20 de Novembro: A História não acabou. Não somos “peças”, nem objetos. Um outro Brasil é possível!

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* Dojival Vieira – Passados 129 anos após a Abolição, a situação da população negra brasileira é o retrato da herança maldita de quase 400 anos de escravidão: morremos mais cedo, ganhamos menos, não temos as mesmas oportunidades de acesso à educação, à moradia digna e aos espaços de poder.

Os dados da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNAD/Contínua) do IBGE, referentes a 2016, são por demais eloquentes: o rendimento dos trabalhadores pardos era R$ 1.480,00 e dos pretos R$ 1.461,00 – 55,5% menos que os trabalhadores brancos.

No quarto trimestre de 2016, o total de desempregados era de 12,3 milhões de trabalhadores, dos quais, 52,7% deles pardos; 11,0% pretos (66,7%); os brancos correspondem a 35,6%.

Que isso aconteça após 13 anos de um Governo autoproclamado de esquerda no Brasil, diz muito. Expõe e revela a natureza dessa República precária que temos, construída sob os escombros do escravismo – a República da Casa Grande.

Não por acaso, o Estado é a expressão dos interesses dos antigos escravocratas e seus descendentes. Não por acaso, os herdeiros das humilhações dos sofrimentos, filhos, netos, bisnetos e tataranetos da senzala, a imensa maioria do povo brasileiro (54% da população, segundo o mesmo IBGE), estão tão pouco – e quase sempre, mal – representados no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, os três Poderes desse mesmo Estado.

Também não é por acaso que a Polícia criada para “caçar” negros sob o escravismo ainda no Império, ou para aprisioná-los nas Delegacias de Vadiagem criadas sob a República, faz a manutenção da estatística perversa: de cada três jovens assassinados pela Polícia, dois são negros.

Diante desse quadro, o que fazemos nós, os negros brasileiros? Como temos reagido a um massacre rotineiro e sistemático que já passa de um século; à condição de sobreviventes submetidos a uma sub-vida?

Para que precisamos mais de símbolos?

Desgraçadamente, o que temos visto é um movimento retórica, quase sempre vazia, que não consegue sair do terreno do simbólico para articular uma resistência que coloque em xeque os fundamentos dessa República – que nem justifica o nome, já que nada mais é do que a representação dos interesses do capital, dos herdeiros da Casa Grande, dos grandes proprietários de terra.

Esse “movimento negro” parado, “chapa branca”, refém das agendas de partidos que reproduzem o racismo institucional, não é digno da memória dos nossos antepassados mortos no tronco ou na resistência cotidiana e secular.

Os negros de altivez não aceitam continuar presos a lógica capitalista que nos mantém como força de trabalho-reserva, a quem estão reservados os sub-empregos, os “bicos”, a invisibilidade e a subalternidade.

O que se tem visto, pelo menos desde que – sob a ditadura – os negros saíram da invisibilidade para criar o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial, que nada tem a ver com esse MNU fragmentado, dividido em não se sabe quantas alas e ou facções, é a submissão a pauta dos partidos da ordem, que reproduzem e fazem a manutenção do racismo institucional.

Observe-se como é rala a presença negra na direção desses partidos. Repare-se como é pequena a participação na direção dos sindicatos e centrais sindicais neste movimento sindical cooptado pelo Estado.

A resistência ao racismo – elemento estruturante da desigualdade social, que torna o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo – tem ficado no plano do simbólico, o que significa pouco mais que nada.

Esse movimento negro mimetiza, apenas na forma, jamais no conteúdo, o movimento negro dos EUA, que constitui apenas 12% da população; é ideologicamente subalterno a pauta de uma academia onde nos tornamos objetos de estudo e temas de conferências e eventos, e em que, há décadas, os mesmos “lideres” repetem o mesmo discurso com ar de novidade.

Por ausência de norte e subordinação ideológica à pauta dos partidos, da academia e da Fundação Ford (conhecido braço do Governo norte-americano), temos aceitado, sem qualquer questionamento, o papel de grupo minoritário da população. Há algo de muito errado, quando uma maioria aceita o papel de minoria e a história não costuma ser benevolente com os que traem o seu papel.

O curioso é que não se ouve, nem jamais se ouviu dos 12% de negros americanos, a palavra de ordem “pela igualdade racial”. Para os líderes do Movimento dos Direitos Civis, como Martin Luther King, deveria soar estranho tal palavra de ordem, já que se a nossa luta é por igualdade racial, isso significa que queremos nos igualar aqueles que, segundo julgamos, estão em posição superior a nossa. Um equívoco – para não dizer uma desonestidade intelectual e uma fraude -, não apenas semântica, mas política, de gravíssimas consequências como temos visto.

Estamos fartos dessa resistência retórica, que mascara sua impotência com discurso radical na forma e vazio no conteúdo. Frases tais como “combate ao racismo”, “enfrentamento ao racismo”, são ouvidas com frequência na boca de certos ativistas nas redes sociais, ou em eventos que, também há décadas, tem a mesma lista de presença.

Não por acaso, frequentam o vocubulário do discurso dos partidos que estavam no Governo antes e continuam no Governo agora. Nada muda.

Chega dessa resistência “para inglês ver”, que se apresenta sob rótulos pomposos como “igualdade racial”, como se fosse possível fazê-lo sob um sistema racista dissimulado, mas não menos perverso. Na verdade, não queremos “igualdade racial nenhuma”, mas precisamente o seu contrário: o direito a exercer as nossas diferenças, que é precisamente aquilo que o racismo nos nega cotidianamente.

Essa política mascara coisa muito pior: mascara o racialismo que confunde e desorienta, ao pretender substituir a contradição fundamental capital x trabalho pela diferença de cor – pretos x brancos. Racismo e racialismo são irmãos siameses, tem ambos a mesma natureza; partem do mesmo pressuposto: a existência de raças. Enquanto o primeiro advogada hierarquias; o segundo prega convívio pacífico – cada um no seu quadrado.

Todos conhecemos a verdade científica de que somos uma única raça – a raça humana.

Chega de mistificação e de enganos! Esse antirracismo de butique e de celebridades; o mesmo que se presta apenas a engordar currículos de uma elite medíocre que se esconde por trás da cor na Academia, e que vive disso; que é usado como modelo de negócios, dos que nos reduzem a “empreendedores” de nichos do mercado, não nos serve.

É um engodo, uma camuflagem que tem como consequência a manutenção da exploração capitalista, da qual o racismo é elemento estruturante da das desigualdades e assimetrias produzidas pela exploração de classe.

O século XXI deve ser o século do levante dos negros brasileiros, mas não é o levante da retórica vazia, do discurso fácil, demagógico e oportunista. Mas é o levante dos que já tomaram consciência dos enganos e dos engodos desta falsa República e que estejam dispostos a liderar e protagonizar a luta do povo brasileiro por sua sua verdadeira libertação.

Aqueles que, por ignorância, falta de informação, desorientação, oportunismo e ou subordinação ideológica, substituem a contradição capital x trabalho por preto x branco, prestam um inestimável serviço ao sistema racista.

No momento em que, no mundo inteiro, as forças mais retrógradas do capitalismo se manifestam por meio da guerra, da xenofobia, do racismo, da homofobia – forças que podem ser identificadas no Brasil com o recrudescimento da violência, que atinge a maioria negra – é hora de dizermos com todas as vozes e todas as forças. Basta!

Queremos um Brasil, sem exploração de qualquer tipo. Um Brasil sem racismo, e isso só será possível por intermédio de um Programa de Lutas que reúna negros e não negros, autônomo em relação ao Estado filho bastardo da República da Casa Grande; laico e aberto a pluralidade de crenças e credos, independente em relação a quaisquer partidos.

Este é o desafio maior deste século para todos os que fazem parte da resistência e que saberão honrar nossos heróis caídos ao longo da história: a luta por país sem corrupção, sem racismo, solidário, socialista e com igualdade de oportunidades para todos.

Não somos peças, nem objetos. A história não acabou. Um outro Brasil é possível!

PS – Este é um texto aberto a todos os que queiram contribuir com ideias e proposições para as mudanças estruturais que o Brasil da Casa Grande vem adiando há mais de um século…

 

* Dojival Vieira é advogado, editor e jornalista da Afropress (www.afropress.com). Sugestões, críticas ou elogios: dojivalvieira@hotmail.com ou pelo site www.afropress.com

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