Dia da Consciência Negra. Ou pra não dizer que não falei de flores

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* Dojival Vieira – A falência do ciclo dos governos do lulopetismo, que nos deixou o legado da maior crise econômica desde 1.929, corrupção generalizada com a quebra da principal empresa brasileira – a Petrobrás – e a crise política em curso, escancarou o que já era visível até para os menos atentos: muito embora correspondam a 53,6% da população, de acordo com o IBGE, os negros no Brasil ainda estão longe de entrar na agenda política. Ou seja: não contamos. E por muitas razões.

A principal delas é que o Estado brasileiro nesta República construída sob os escombros do escravismo, patrocinador dos escandalosos níveis de desigualdades e de injustiça – dos quais os negros, a parcela majoritária, são as principais vítimas – não quer. E não quer porque o racismo, herança maldita de quase 400 anos de escravidão, com a qual nenhum Governo ousa ajustar contas, é elemento estruturante dessa desigualdade, o fluxo contínuo de retirada de riquezas que saem da senzala – as favelas e periferias pobres das cidades – para a Casa Grande – os palácios oficiais ou particulares.

Esse estado de coisas pode ser conferido no cotidiano de uma educação pública sucateada, na precariedade do sistema de saúde, na falência do sistema prisional e de segurança, com as prisões superlotadas (por negros, claro) e por todas as demais mazelas conhecidas.

Mas, o que conhecemos por movimento negro, esse que se autoproclama, em suas várias vertentes e matizes e orientações ideológicas, e que chamo de movimento negro chapa branca – guetizado, partidarizado -, também tem sua parcela de responsabilidade que é preciso, desde já, assumir se não quisermos atravessar mais um século marcando passo, sem sair do lugar.

Prá começar, em um país em que os negros são ampla e larga maioria, é inaceitável – e porque não dizer criminoso -, aceitar o papel de símbolo e abdicar de qualquer protagonismo nesta República de poucos, ainda que no latim devesse traduzir coisa pública – “res pública”.

São inúmeros e infindáveis os exemplos dessa postura subserviente e sem noção presente em qualquer manifestação pública em que o tema é tratado. São comuns nessas cerimônias, as cenas de negros jogando capoeira, a religiosidade de matriz africana sendo usada e abusada de forma desrespeitosa às entidades, para não citar o samba, que parece ser um cartão de apresentação do ser negro.

É como se negro só pudesse gostar de samba e pagode (nada contra quando a música é boa, claro), mas também de clássicos, de jazz, de MPB, blues e de toda boa música. O estereótipo do negro sambista e pagodeiro e capoeirista é uma caricatura conhecida.

Eis aí o papel de símbolos, a que fomos reduzidos e isso acontece em qualquer ato em que a presença negra seja requerida ou solicitada, quando não nas próprias manifestações como as ocorridas em datas como a de hoje.

Há alguma coisa muito errada quando uma maioria aceita – pela voz de quem diz representá-la –, de forma subserviente e acovardada, o papel de apenas símbolo que não lhe cabe: o de minoria.

É o mesmo estereótipo que reduz a mulher negra a “mulata boazuda”, que encanta os homens no carnaval. Como se essa mesma mulher, a deusa do gingado, capaz de enfeitiçar gringos e troianos, não tivesse vida, a mesma vida normal de todas as mulheres, negras e não negras pobres, submetidas ao racismo e ao machismo.

O segundo exemplo dessa postura subserviente é a submissão dos chamados negros militantes a pauta de partidos políticos. Todos eles, independente de posições político-programáticas-ideológicas, praticam, desde sempre, racismo institucional e representam e disputam espaços de poder no Estado que o pratica.

Nos últimos 13 anos foram fartos os exemplos da falta de postura, da ausência completa de altivez, do servilismo mais abjeto. Quando as multidões tomaram as ruas, nas jornadas de junho de 2013, uma das primeiras reações da então presidente foi chamar supostas lideranças negras, ligadas ao PT e ao PCdoB, para falar em nosso nome. E lá foram eles, todos, para a vexatória cerimônia do beija-mão.

Na foto – confira – aparecem cabisbaixos, como que pedindo desculpas pela perda completa da vergonha e de um senso mínimo de altivez. São esses mesmos que, agora, com a derrocada do Governo a que serviram, esqueceram o repertório dos seus tediosos e verborrágicos discursos e súbitamente só conseguem balbuciar o mantra ditado por seus donos: “é golpe”.

Os exemplos da perda da compostura necessária a qualquer movimento social que se pretenda sério, não ficam por aí. Há uma outra vertente que, sob o pretexto de entender a educação como um espaço para o acesso a cidadania, passou a ver nas cotas e nas ações afirmativas, apenas um biombo para a conquista do sonhado mestrado e doutorado. Mais uma vez é a carreira individual e o símbolo que se busca.

Esses mesmos negros fazem questão de serem apresentados nas cerimônias e eventos como “professor/ doutor” ou “mestre/professor/doutor”, ou coisa que o valha, seguido dos respectivos currículos. São, em geral, alvos de homenagens nessas datas festivas, normalmente prestadas por participantes da própria panela, ou confrarias, ou partidos, a que pertencem. Nem uma coisa, nem outra resulta para os negros brasileiros qualquer serventia.

É nessa linha e nas ONGS de algumas dessas personalidades, que atua a poderosa Fundação Ford, com laços conhecidos com o Departamento de Estado norte-americano (e não se confunda isso com o discurso pobre dos que passaram a ressuscitar o anti-americanismo pré-queda do muro de Berlim, do período da guerra fria, por pura conveniência para dar algum sentido aos discursos desconectados da realidade.

Está provado que tais organizações que deveriam se chamar organizações neo-governamentais, ou negro-governamentais, captam fundos em dólares para mimetizarem aqui as práticas do movimento negro norte-americano.

O fazem como meio de vida e tem inúmeras vantagens nisso, ignorando propositalmente a realidade conhecida de que os negros nos EUA representam apenas 12% da população e que o fenômeno do racismo naquele país é diferente do nosso, fato conhecido desde o sociólogo Oracy Nogueira, na década de 50. Lá, pratica-se o racismo de origem (uma gota de sangue negro, torna a pessoa negra); aqui, o de marca, uma pessoa é considerada negra pela quantidade de melanina da pele e pelo tipo de cabelo.

O resultado de tais práticas e posturas é que “tudo muda para tudo continuar como sempre foi”. Nunca se falou tanto de racismo, de denúncias de atos racistas nos jornais e no telejornalismo. Recentemente a apresentadora do tempo, da TV Globo, Maria Júlia Coutinho, se tornou celebridade por ter sido o alvo de ataques racistas, com direito a solidariedade de colegas da bancada do Jornal Nacional, que tem audiência estimada em 40 milhões de telespectadores.

Mas, o que, na prática, mudou, além de do modelo de antirracismo “fofo” da Rede Globo, ensaiado por William Bonner? Tudo muda para tudo continuar como sempre foi: nada muda.

Os índices de violência que atingem os jovens negros se manteve o mesmo, se não aumentou: cerca de 30 mil jovens de 15 a 29 anos são assassinados por ano no Brasil, dos quais 77% são negros – pretos e pardos; as condições de vida da maioria da população continuam os mesmos: somos as vítimas preferenciais do desemprego, os níveis de renda desabaram com a crise econômica. E a propósito: por onde anda a famosa classe C, que até já andava de avião, transformada em objeto de propaganda de sucesso pelo lulismo?. Continuamos lotando o sistema prisional que já foi comparado por um ministro da Justiça com “masmorras medievais”.

Depois, há quem pergunte por que S. Paulo elege para vereador um garoto negro de apenas 20 anos, pobre, gay assumido e nordestino, com um discurso anti-vitimismo, anti-cotas e defendendo valores pró-mercado, como se não fosse esse mesmo mercado, o que se beneficia com a exclusão de pretos e pobres. È simples: porque esse movimento negro chapa branca e partidário não consegue eleger nem síndico de prédio, com todo o respeito aos síndicos; não se respeita, nem nos respeita, porque abdicou por completo da altivez e aceitou o papel de símbolo vazio.

Não tem programa, não tem estratégia, não tem lideranças confiáveis e se baseia nas sequelas do escravismo (o “farinha pouca, meu pirão primeiro”) para se tornar o principal agente de desunião, disputa fraticida e desagregação da maioria negra. Ao invés de protagonismo, o que faz é encenação; ao invés de presença altiva na foto, presta-se ao papel patético de papagaio de pirata de eventuais ocupantes do poder; claro, de olho num “carguinho simbólico”, sem recursos nem orçamento.

Nada contra festas e celebrações. Mas, tudo tem limite, chega! É hora de, na data dedicada a memória de Zumbi dos Palmares – herói brasileiro, com nome inscrito no Panteão de Heróis da Pátria, e que o vereador citado acima quer revogar – os negros brasileiros, respeitarem o seu exemplo.

Estamos todos carecas de saber que mudanças só começarão a acontecer quando, de fato, os negros brasileiros e todos os setores democráticos e antirracistas da sociedade, independente da cor da pele, assumirem o papel de protagonistas e disputarem espaço na agenda das políticas públicas no Estado e nesta República secularmente de poucos.

Por ora, somos só símbolos, para deleite e comemorações – aí sim -, dos que continuam ganhando com a nossa exclusão.

* Dojival Vieira é advogado, jornalista e editor da Afropress. Sugestões, criticas ou elogios: dojivalvieira@hotmail.com ou pelo site www.afropress.com

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