‘Um chão de presas fáceis’ relata dramas de moradores de cidades mineiras

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Da Redação – Um painel do Brasil a partir de uma região brasileira. A frase pode definir Um chão de presas fáceis, o mais recente livro de Fernando Fiorese. Em 280 páginas, o autor apresenta por meio de capítulos breves — ou fragmentos individuais? — dramas de moradores que vivem nas cidades mineiras pelas quais passa a BR-116, trecho conhecido como Rio-Bahia.

É possível pensar a obra como um romance, mas principalmente como um livro de contos. Cada capítulo traz uma situação dramática que funciona isoladamente — o conjunto também faz sentido, e há capítulos, no final da obra, que apresentam pontos de contato entre si, mas os fragmentos — seriam mesmo capítulos? — possuem começo, meio e fim, e se bastam.

Apesar de as narrativas serem ambientadas em cidades mineiras, a impressão é de que o livro tem como cenário uma única cidade. Os muitos personagens pobres são coadjuvantes em uma rotina controlada por pouquíssimos ricos. A maioria não tem perspectiva de crescimento, os salários permitem apenas sobreviver. A existência é trabalhar em alguma fábrica, casa ou sítio, isso quando tem vaga, vender o corpo por pouco dinheiro, comer, dormir, acordar, ingerir bebida alcoólica para esquecer e, às vezes, morrer em meio a algum conflito fútil. Um chão de presas fáceis até parece, tanto, o Brasil.

Da síntese e do humor – Os fragmentos da narrativa são acompanhados de um breve resumo. Então, antes de seguir pelo texto em prosa, o leitor tem acesso a uma sinopse do que vai encontrar. Na página 29, por exemplo, no capítulo Desaparecida — ou seria um fragmento ou um conto? — há uma informação inicial: “Cartaz afixado no Posto Xodó, entrada de Medina”. Em seguida, Um chão de presas fáceis traz o texto:

Maria da Silva, 57 anos, estatura nem alta nem baixa, gordinha, cabelos e olhos escuros. Desaparecida de Comercinho na noite do dia 10 de outubro de 2007. Vestia calça comprida preta e camisa de malha bege. Não precisa voltar. Mas que entre em contato, ao menos para dizer onde enfiou a receita de fios de ovos da mamãe.

Este exemplo, com variações, muitas das quais mais extensas, se repete por toda a obra. O narrador solta um spoiller, para, em seguida, narrar. E os títulos dos capítulos — que na realidade são, enfim, contos — já sugerem aquilo que o leitor vai se deparar ao fruir o texto. Eis alguns dos títulos dos contos: “Menino quando enfeza, sobe o preço da vela”, “Tudo lhe fede, nada lhe cheira”, “Há males que vêm pra pior”, “Antes de entrar, veja por onde sair”, “O que carcará deixa, urubu não enjeita”, “Eu queria ser pobre um dia, porque é duro ser pobre todo dia”, “Marido fora, mulher dá esmola” e “Casar é trocar o doce pela doença”.

Auto-explicativos, os títulos — que lembram frases de para-choques de caminhão —, de fato, antecipam a narrativa e, ainda, revelam o humor e a ironia presentes no livro. “Marido fora, mulher dá esmola” trata, a exemplo do que está sugerido, de adultério. Durante a ausência do marido, a esposa se envolve com pelo menos um outro homem, apesar de ela mesma não acreditar, aparentemente, naquilo que fez e nas consequências do ato:

Coisa de cervejada, as colegas atiçando, sem mentira nenhuma, uma única vez, como é que foi acontecer um troço destes, doutor?, com que cara eu vou olhar pro meu Louro, doutor?, ele pra mais de seis meses em São Paulo e eu aqui grávida, beirando os quatro meses, capaz até dele me esfolar viva […] ou o senhor me arranja um remédio pra tirar essa criança logo, ou eu sou capaz de dar cabo da minha vida […] Fiorese investe em uma narrativa precisa, o narrador utiliza as palavras mais adequadas possíveis, a escrita segue na ordem direta, em primeira ou terceira pessoa.

Fernando Fiorese afirma, na Nota do autor, que os verdadeiros autores de Um chão de presas fáceis são dois amigos dele, Humberto e Murilo. Eles teriam encaminhado a Fiorese transcrições de entrevistas, cópias de textos extraídas de livros, folhas manuscritas e datilografadas, registros de diálogos ouvidos ao acaso — enfim, material coletado na Rio-Bahia entre julho e setembro de 2011, matéria-prima para um — suposto — documentário que nunca chegou a ser editado.

Ainda na Nota do autor, Fiorese comenta que organizou o material que recebeu a partir de um roteiro e de um diário. Por isso, Um chão de presas fáceis é apresentado como “Documentário” e, Fiorese insiste, os verdadeiros autores são Humberto e Murilo. O artifício, guardadas as proporções, já foi utilizado na literatura, entre tantos autores, por João Ubaldo Ribeiro, em A casa dos budas ditosos, e o recurso também aparece em Amar-te a ti nem sei se com carícias, de Wilson Bueno.

Mais do que se valer de um mecanismo desgastado, receber um conteúdo alheio e publicar em seu nome, o que tende a provocar o efeito — dejá-vù? — de uma piada que não tem mais graça, no caso de Fernando Fiorese o artifício se revela desnecessário, absolutamente desnecessário.

Para o leitor, não faz diferença se o autor, ou uma outra pessoa, fez a pesquisa de campo na rodovia Rio-Bahia. O livro de ficção funciona, e se impõe, não apenas por aquilo que “conta”, mas como “conta”. Fiorese investe em uma narrativa precisa, o narrador utiliza as palavras mais adequadas possíveis, a escrita segue na ordem direta, em primeira ou terceira pessoa, e todos os fragmentos da obra são compreensíveis, em sintonia com a oralidade, enfim, em busca do leitor.

Mesmo que utilizar o artifício, de ter recebido o “livro” de presente, tenha sido uma brincadeira — talvez seja essa a intenção do autor, a piada não funciona diante da obra literária, do texto irretocável, que, inclusive por causa do humor que relativiza impasses complexos, diz muito sobre a tragédia brasileira. (Marcio Renato dos Santos)

Capa nova.inddConfira um trecho de Um chão de presas fáceis

 

“É o que eu digo, cara, já fiz de tudo nessa vida. Não lembro de um único dia no à-toa desde que tinha meus seis, sete anos. Sempre engordando o patrão. Fosse rico ou remediado, nenhum daqueles fodidos nunca me deu um tostão de gorjeta. E eu que bobeasse nas contas… Acabava devendo até os cabelos da bunda pra eles.”

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