Trabalhador cidadão

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* Ricardo Pereira de Freitas Guimarães – A vida nos grandes centros sempre foi objeto de estudos. Desde as épocas antigas, humanos – enquanto viventes sociais – caminham numa incansável luta que se expressa pelo autoconhecimento e o conhecimento do relacionamento com o outro. Esse trilho seguido pelos humanos acaba por disseminar dúvidas em muitas formas de relacionamento – familiares, políticos e do trabalho – que não raras vezes acabam por refletir a dúvida sobre seu espaço como cidadão, enquanto aquele que ocupa e é reconhecido pelo Estado. 

O cidadão, inversamente ao apátrida, ocupa localidade específica no Estado, lhe sendo garantido uso e gozo das prerrogativas de um cidadão, com vinculação direta aos dispositivos legislativos e costumeiros. De outro giro, o apátrida então reconhecido e conhecido como o não cidadão em termos formais, afasta-se da relação com o Estado pelo não reconhecimento de sua efetiva condição de pertencente a uma determinada pátria. (…) Nos dias atuais, referida expressão ganha novos contornos para além da cidadania em seus aspectos políticos, inserindo ao contexto a cidadania civil e a cidadania social, que são contornos próprios de uma mesma raiz que precisam avançar nos Estados que possuem como fundamento a democracia como centro do tratamento social. 

Tentando acompanhar esse desencadear das relações fundadas nas revoluções ocorridas ao longo da história e na própria forma de produção, prestação do trabalho e distribuição de renda, a legislação de cada país, de seu modo, procura acomodar eventuais abismos encontrados entre o que ocorre na sociedade e as regras legais, enfrentando questões que surgem na atual quadra histórica. 

Não ficou fora desse enfrentamento a relação social do trabalho, ou seja, aquela relação em que um cidadão pertencente a uma sociedade realiza um serviço com objetivo de sua manutenção ou de sua família, através de qualquer forma de prestação de serviço. Inúmeros contextos se apresentaram na própria forma de produção tais como o fordismo, taylorismo e o próprio toyotismo, em que o homem com o auxílio da máquina elevava a produtividade dos tomadores desse serviço.

Laborando em jornadas de trabalho extensivas, não demorou para que a consequência chegasse com doenças e acidentes. Surge, então, de forma ainda tímida, o primeiro exemplo de cidadania social no nosso modo de ver, revelado pela proteção do estado físico dos prestadores de serviço (trabalhadores), principalmente pelos custos que esses trabalhadores passaram a gerar ao próprio Estado em razão dos benefícios previdenciários requeridos ou ainda, como pano de fundo pelo estado disfuncional e inativo dos trabalhadores sequelados, que indubitavelmente foi fator de maior pobreza e descontentamento social. 

Tal circunstância levou pensadores à necessidade de inserção de eventuais políticas que possuíssem como objetivo maior o bem estar social. A união do Estado através de ações chamadas de afirmativas e os sindicatos, representantes dos trabalhadores, no intuito de diminuir o impacto social de um capitalismo exacerbado, com tentativas de preservação da saúde e do próprio acesso à saúde, além da compreensão das diferenças entre trabalhadores, criando situações e mecanismos de busca da proteção. 

Contudo, a partir da década de 1980, há significativa alteração na forma de prestação de serviços com a chegada da Internet. Nesse momento, o cenário se altera sobretudo para o sucesso do capital pelo fenômeno denominado de globalização, que se apresentou de forma a ignorar fronteiras aliadas ao fenômeno denominado de terceirização. Na presente quadra mais uma significativa alteração denominada de “era digital”, que com a chegada da robótica e da inteligência artificial desenha uma ruptura do trabalho humano pelo trabalho dos sistemas, noutra palavras a máquina substituindo o homem. 

Esse circuito de substituição de métodos e processos de se trabalhar ou de propiciar trabalho somado aos elementos disruptivos, ao tempo que revela a expressão da pós-modernidade, pode acabar por atingir em cheio garantias e direitos fundamentais que antes não eram objeto de receio do humano trabalhador, até com violação de sua própria cidadania. A alteração de tais eixos de produção e atividades das e nas empresas estabelecidos no cenário atual, somado ao desenvolvimento em massa da atividade tecnológica acabaram por criar diferentes formas de prestação do trabalho. Há o enxugamento dos setores internos das empresas, que hoje, trabalhando com tecnologia e inteligência artificial acabam por possuir sua base de produção em sistemas, não mais no humano.

Há aqui transferências da própria produtividade para o consumidor e para os trabalhadores vinculados a plataformas comandados por algoritmos. Essa romantização de um ideal dos trabalhos em plataformas se constrói por trás do slogan “economia do compartilhamento”, por meio do qual grandes companhias dominantes dos setores se tornaram forças esmagadoras, que passam a desempenhar um papel extremamente invasivo nas trocas que intermedeiam. O que está em jogo neste cenário é como a economia do compartilhamento propõe duas visões de mundo.

A primeira, uma visão comunitária e cooperativa, estruturada em trocas pessoais de pequena escala. Já, a segunda, é tomada por uma ambição disruptiva e planetária de companhias que têm bilhões de dólares para gastar, desafiando leis estabelecidas democraticamente por todo o mundo, comprando competidores na busca por ascensão e pesquisando novas tecnologias com o intuito de tornar obsoleta a força de tais leis. A ideia é a de que passamos por uma crise da “sociedade do trabalho”, na medida em que a atividade econômica predominante não é mais aquela voltada para produção de bens de uso, como tem sido durante toda a história da humanidade, e se não retrocedemos à pré-modernidade, ou mesmo, à pré-história, é porque ingressamos na “pós-história” e na “pós-modernidade”.(…)

Temos vivenciado uma verdadeira fetichização de nosso legislativo e de parte de nossa doutrina sob o argumento de que as reformas legislativas representam a porta de saída para os nossos principais problemas judiciais como: insegurança jurídica, multiplicação de processos, necessidade de uniformização da jurisprudência, etc. 

O viés, na realidade, é de um modelo autoritário, em que caminhamos cada vez mais para uma jurisprudência mecânica. A nosso ver, toda discussão parte de uma cegueira que revela o quanto temos agido em nosso País de modo refratário ao Direito e às nossas instituições, algo paradoxalmente constituído juridicamente no nível produção/consumo, daí ser – infelizmente – óbvio pretendermos criar mecanismos por meio de reformas da legislação para resolver a máxima quantidade de questões, deixando clara a percepção do desconhecimento que nos cerca sobre as questões fundamentais de nossas relações trabalhistas, algo que, antes de tudo, deve ser pensado sob a via do diálogo social e não sob o perfil autoritário – e violento – do “o que é seu é meu…” 

Como já dito anteriormente, a precarização deve ser entendida como algo inserido num contexto liberalizante que dentre outros sentidos, possui o objetivo de transferir responsabilidade do empregador ao trabalhador. E é justamente na transferência da responsabilidade ou do risco do negócio que se encontra a chave de desconexão dessa “modalidade” de relação laboral com o Direito pátrio trabalhista. 

Todo o ordenamento jurídico trabalhista está alicerçado nos  conceitos clássicos de empregado (art. 3º) e empregador (art. 2º), sendo que no conceito de empregador tem-se como requisito essencial aquele que assume “os riscos da atividade econômica”. Uma grande parcela dos operadores do Direito e da própria sociedade coloca como ponto nevrálgico para extinção da relação laboral celetista a reforma trabalhista ocorrida em novembro de 2017 através da promulgação da Lei nº 13.467/2017.

Contudo, este fenômeno de transição há tempos vem dando sinais, por meio da própria evolução social, para a inteligência artificial que, por consequência, aflora ainda mais o individualismo, no qual o individuo se basta em si para superar todos os seus problemas e desafios, como destaca Byung- Chul Han em sua obra “Sociedade do cansaço”. 

Esse “cansaço” é justamente o ponto onde “os riscos da atividade econômica” são transferidos para o pseudo-empregado, fazendo com que aquela sociedade disciplinada e repressora advinda da Revolução Industrial, na qual a figura do empregador e empregado conceituados os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que se encaixava perfeitamente na pacificação da relação laboral celetista não mais se sustente, ou seja, o nosso modelo de direito laboral não dá mais conta de proteger a sociedade nas relações laborais. (…)

O Estado Constitucional surge não para negar o Estado Social, mas para possibilitar que sua ideologia fosse efetivamente realizada nas relações sociais e, ao mesmo tempo, assegurar os direitos e garantias consagrados, em parte, no modelo liberal. Contudo, a aplicação dos direitos sociais constitucionais e infraconstitucionais dependem única e exclusivamente da comprovação do vínculo de trabalho e/ou emprego através dos requisitos especificados nos artigos 2º e 3º da CLT, exceção única a do trabalhador avulso, ou seja, aquela relação precarizada que, por sua natureza ou modus operandi, não cumprir tais requisitos celetistas estará desamparada da aplicação dos direitos sociais e fundamentais laborais, ou seja, estará à margem da sociedade. 

Não resta dúvida de que a caminhada foi longa até chegarmos à criação da CLT e, posteriormente, na Constituição Federal de 1988, exaltando o texto inserido no caput do art. 7º, que diz “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”, denominado princípio do não retrocesso social. 

Assim, quando falamos do binômio capital/trabalho não se trata de esvaziarmos um lado em detrimento do outro lado, sendo necessário observar se há ou não um cuidado com a sociedade como um todo. A importância do vínculo de emprego como função social em um Estado Democrático de Direito é o resultado de uma luta que se iniciou no Brasil desde o período escravocrata, passando pela era pré-Vargas, marcada pela construção de uma identidade social do povo brasileiro, em especial, do trabalhador, dando todo suporte para construção da CLT na Era Vargas, até chegarmos na Constituição Federal de 1988. 

Defender que a relação de trabalho e/ou emprego possui uma função social que enseja proteção constitucional não significa dizer que a mesma não pode ser modificada para se adequar às mudanças sociais, inerentes à própria condição humana. Mas que essas mudanças devem obedecer a determinados limites, de modo a não ser fundamentalmente descaracterizada ou eliminada. Neste sentido, deve-se perceber como a tensão que perpassa todo o Estado Democrático de Direito – e, portanto, todas as relações humanas na atualidade, entre direitos e garantias de cunho individual, social e difuso, os quais precisam ser compatibilizados nas situações concretas – apresenta-se no Direito do Trabalho e, mais precisamente, no tocante ao vínculo de emprego. 

É forçoso reconhecer as peculiaridades da relação de trabalho e/ou emprego em relação às demais relações jurídicas. Este ponto é fundamental, pois o modo como se reconhece determinada relação jurídica vai implicar, em seu desenvolvimento e interpretação, consequências próprias. 

Assim, cabe a nós o próprio Direito do Trabalho já positivado para garantir o mínimo de direitos sociais as relações laborais com a criação de uma terceira e/ou quarta figura jurídica que se amolde dentro do Direito constitucional e celetista. Como já escrevemos alhures: “a chave sempre terá que entrar na fechadura para a porta abrir”. 

* Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, advogado especialista, mestre e doutor pela PUC-SP, titular da cadeira 81 da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e professor da especialização da PUC-SP (COGEAE) e dos programas de mestrado e doutorado da FADISD-SP

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