* Ricardo Toledo Santos Filho – As pessoas públicas têm direito à privacidade? Sem dúvida que sim. Porém, com o acréscimo do adjetivo “relativo”, para ficar claro que não se trata de dogma absoluto e, em determinados momentos, possível a flexibilização. A salvaguarda tem alcance universal. No Brasil há a proteção contida no art. 5º, X, da Constituição: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”.
A tutela da intimidade é conceito recente na história da Humanidade. Incorporado ao ordenamento jurídico de muitas nações, ainda suscita controvérsias quanto à sua incolumidade e exceções em algumas circunstâncias – a exemplo do confronto entre a privacidade pessoal e o direito da sociedade à informação de interesse público. Surge, agora, a polêmica do exame de Covid-19 do mandatário da nação, em tempos de aguda crise sanitária mundial.
De que lado pende a balança da equidade? Teria o direito de manter incógnito o resultado do teste a que se submeteu ou teria a obrigação de divulgá-lo? Os brasileiros têm o direito de saber se o representante eleito foi ou não infectado pelo vírus que ceifa milhares de vítimas mundo afora e, sabidamente, contaminou dezenas de integrantes da comitiva que, ao seu lado, se deslocou aos Estados Unidos?
Chamou atenção sua resistência a mostrar o exame – ao passo que outros líderes mundiais, a começar de seu ídolo Donald Trump, acorreram às câmeras para exibir o resultado negativo do teste. Bolsonaro chegou a alegar que todos têm direito ao anonimato e a indagar: “Por que pra mim tem de ser diferente?” Ao analisar o caso, o presidente do TRF da 3ª Região afirmou: “Não se trata de personalíssimo direito à manutenção da privacidade dos resultados dos exames, senão de informação que se reveste de interesse público”.
Levado o feito ao STJ, o Ministro Presidente entendeu que não havia a obrigação de mostrar o exame, pois “a todo e qualquer indivíduo garante-se a proteção à sua intimidade e privacidade, direitos civis sem os quais não haveria estrutura mínima sobre a qual se funda o Estado Democrático de Direito”.
Bem se destaca a divergência exegética. E o Direito não é ciência exata; ao revés, vem sempre sustentado por concepções interpretativas. A hipótese em análise encerra um confronto de direitos em que deve prevalecer o interesse superior da sociedade sobre o ínfero do indivíduo – não importa quem ele seja (e o debate não é novo, confira-se, por exemplo, a discussão sobre a proibição de fumar em determinados locais).
Como um raio de sol na escuridão, a questão está dirimida no art. 93, IX, da Constituição. Ao definir que todos os julgamentos nos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, a Carta ressalva que a lei poderá restringi-los “em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
O tema chegou ao STF. No entanto, a AGU antecipou-se e, antes de qualquer decisão, remeteu o resultado dos exames. Diante disso, o ministro relator não entrou no mérito do tema e deu a ação por encerrada porquanto o pleito de divulgação estava atendido.
Sem o julgamento definitivo pela Suprema Instância, a controvérsia permanece. A nosso ver, chega a ser um truísmo observar que as franquias do indivíduo, seu direito de vedar aos olhos do público aspectos pessoais que prefere resguardados, cedem ao interesse da sociedade.
Se desfruta, como todos, de uma esfera inexpugnável na vida privada, em assuntos que se confinem à sua estrita intimidade pessoal e familiar, tudo o mais do comportamento que afete o interesse coletivo, os negócios de Estado, a condução do governo seguramente não está protegido pelo instituto da privacidade. Todo e qualquer gesto ou fato de seu universo nestas hipóteses está sujeito à divulgação – sobretudo para escrutínio da população.
Haveria uma exceção: caso fosse o mandatário objeto de investigação, por eventual cometimento de ato ilícito (como se sujeitar a contato, em grupo aglomerado, sendo portador do vírus, a periclitar infecção a terceiros). Nesse caso específico, outro direito individual, constitucionalmente resguardado, prevaleceria: o direito a não produzir prova contra si, ou seja, não se auto incriminar.
* Ricardo Toledo Santos Filho é Vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo
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