Prof. Dr. Jack Brandão, especialista em imagens, ressalta como a estátua de Borba Gato não passa de uma construção imagética, a partir de uma análise histórica sobre a figura do bandeirante
Da Redação – “Atear fogo na estátua de alguém que representa o genocídio indígena não é um ato de vandalismo, mas de resistência” / “É inaceitável o incêndio causado na estátua de Borba Gato, pois se trata de um patrimônio da cidade de São Paulo”. Na tarde de sábado (24/07/21), comentários como esses passaram a proliferar nas redes sociais, fomentando uma intensa discussão, que começou quando alguns manifestantes do auto-intitulado movimento Revolução Periférica incendiaram o monumento em homenagem ao bandeirante Borba Gato (1649 – 1718), localizado no distrito de Santo Amaro, na capital paulista.
Para o Prof. Dr. Jack Brandão, pesquisador sobre o poder e o papel da imagem na sociedade, a questão é muito mais complexa do que as discussões levantadas nas redes, tanto pelos opositores, quanto pelos defensores do incêndio provocado na estátua. Segundo o pesquisador, é preciso ter consciência de quem realmente foram os bandeirantes e de que a estátua incendiada não passaria de uma construção imagética, incoerente com a verdadeira imagem de Borba Gato.
Segundo Brandão, nos séculos XVI e XVII, a região de São Paulo era marcada pela pobreza. Seus habitantes se sustentavam com a agricultura de subsistência. A partir de 1580, muitos paulistas migram para o interior em busca de metais preciosos para sobreviverem, dando início àquilo que seria conhecido como “Bandeiras”, daí o termo “bandeirantes”. “Nós devemos nos atentar, no entanto, para o fato de que muitos desses cidadãos eram maltrapilhos, que andavam descalços, ao contrário da forma que passaram a ser representados em muitas obras e livros de história: com botas e carapaças de couro, espadas e arcabuz”. Algo que o professor considera uma construção romântica do final do século XIX e início do XX, de modo especial quando da comemoração do primeiro centenário da independência do Brasil
Outra questão descontruída pelo professor é a forma como alguns enxergam os bandeirantes, classificando-os, unicamente, como caçadores e genocidas indígenas. “Óbvio que houve, sim, perseguição e escravização dos índios pelos bandeirantes. Mas não podemos generalizar essas questões como a única função de todo esse grupo. Alguns chegavam a se aventurar pelo interior do Brasil, juntamente com outros índios, a caça de outras tribos indígenas.”
Brandão também questiona o uso do termo genocida atribuído a Borba Gato, pois, de acordo com o pesquisador, não há provas cabais de que ele teria dizimado populações indígenas, como foi propagado. “É preciso ter cautela quando usamos o termo genocida, algo que remete ao assassinato de um povo, como pudemos observar no caso do nazismo, do genocídio armênio e, até mesmo, do descaso governamental brasileiro com a pandemia da COVID-19, contribuindo para o aumento das mortes de milhares de pessoas.”
Outro exemplo de genocídio dado pelo professor se refere à dizimação dos povos indígenas na América do Norte, por serem considerados um entrave para a colonização, ao lutarem por suas terras, entre outras perseguições históricas.
Já em relação aos bandeirantes paulistas, Brandão não os considera inocentes, mas afirma que o genocídio não era seu propósito, como o caso de Borba Gato, que foi considerado um dos mais célebres bandeirantes por ter descoberto um filão de ouro, na região de Sabará, em Minas Gerais. “Por isso, não podemos comparar Borba Gato com o presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, por se tratar de personalidades completamente diferentes em um contexto histórico totalmente distinto. Não devemos olhar o passado com os olhos do presente.”
O professor também chama a atenção para as críticas feitas ao escultor da estátua de Borba Gato, Júlio Guerra (1912 – 2001). “Ele não criou apenas esse monumento. Quem for ao Largo do Paissandu, no Centro Histórico de São Paulo, encontrará uma estátua chamada ‘Mãe Preta’, em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ela foi feita por Guerra que, por meio dela, buscou exaltar a figura da mulher negra.” Para Brandão, trata-se de uma constatação de que o escultor, provavelmente, não seria conivente com a opressão das minorias.
Ele acredita, portanto, que a escultura de Borba Gato foi produzida dentro de um contexto, em meados da década de 50, de idealização e de mitificação da imagem do bandeirante. “Assim, quando alguém defende a destruição da estátua, nesse caso, está defendendo a destruição de uma parte da história que necessita ser compreendida”, completa. O pesquisador vê uma diferença em relação aos Estados Unidos, onde diversas estátuas que foram derrubadas eram, realmente, de escravocratas que se orgulhavam e propagavam a diferença étnica. “Aí eu concordo, em parte, com a retirada, pois se trata de monumentos erigidos em nome de uma política escravocrata. O que não é o caso da obra de Guerra.”
O professor ainda traz diversas outras questões em um vídeo do Canal Imagens em Foco, pertencente ao grupo de pesquisa acadêmica CONDES-FOTÓS Imago Lab, que pode ser conferido pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=IuJgPowkS6w
Sobre o Prof. Dr. Jack Brandão:
Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor do Centro de Estudos Logo-imagéticos CONDES-FOTÓS Imago Lab, editor da Lumen et Virtus, Revista interdisciplinar de Cultura e Imagem, pesquisador sobre a questão imagética em diversos níveis, como nas artes pictográficas, escultóricas e fotográficas.
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