* Rivail Andrade – Vivemos em um país diverso e desigual, em que cerca de 40% da população urbana não tem acesso à cidade legal. A moradia é um elemento escasso, negociada de forma seletiva em um mercado repleto de burocracias e normas confusas, que impulsionam o surgimento de ocupações irregulares.
Nesse cenário, é comum que famílias que não contam com renda suficiente para ter acesso ao mercado imobiliário formal ou às políticas públicas acabem “dando um jeitinho” para suprir sua necessidade básica de abrigo.
Entre os artifícios utilizados encontra-se a construção de “puxadinhos”. Uma situação corriqueira decorrente desse hábito é a da família que constrói um novo espaço para abrigar um filho recém-casado que, após algum tempo, acaba se mudando e alugando, vendendo ou cedendo esse espaço, muitas vezes sobre a laje, para alguém externo à família.
Em vários locais do país, alguns com maior frequência, a comercialização da laje é uma prática corriqueira que produz, em alguns bairros mais populares, uma paisagem com as pequenas edificações formadas por “puxadinhos”.
Alguns moradores vinham tentando, sem êxito, regularizar essa situação com base no direito de superfície previsto no Estatuto da Cidade. Pode-se afirmar que a Medida Provisória nº 759/2016 é mais uma tentativa de normatizar algo que, há muito, já é feito na prática.
A MP trata de uma série de outros assuntos que vêm sendo criticados por diversos grupos organizados, mas que não serão discutidos aqui. O fato de ter sido aprovada como medida provisória, e não como projeto de lei, limitou as discussões, deixando diversas questões em aberto.
A MP rompe com o princípio geral do direito de que o acessório segue o principal, desvinculando a matrícula da edificação (acessório) do terreno (principal). Dessa forma, cria uma situação nova em que o proprietário da edificação não possui uma fração ideal do terreno, como ocorre nos condomínios. A manutenção do terreno caberá exclusivamente ao proprietário original?
Como regularizar o “andar” de uma edificação, normalmente feita no processo de autoconstrução, sem o auxílio de um profissional que ateste a estabilidade estrutural dessa obra? De acordo com a MP, o adquirente do direito real de laje não pode instituir sobrelevações sucessivas.
Como ficam as edificações com três ou mais pavimentos? A laje deve ter isolamento funcional e acesso independente. Como proceder nos casos, tão comuns, em que a pessoa para ter acesso ao pavimento superior deve passar pela residência térrea? Deve-se constituir uma servidão de passagem? É possível adquirir usucapião da laje? Muitas questões ainda precisam ser regulamentadas pelo poder público.
O direito real de laje constitui um avanço em um país em que a segurança jurídica e o acesso à terra não são para todos. Ele auxilia na permanência legal da população em áreas já consolidadas, reduzindo o processo de periferização e ocupação em áreas ambientalmente frágeis.
No entanto, deve ser pensado de forma a garantir a qualidade urbana, condições de habitabilidade e segurança – e não apenas como forma de legalizar a precariedade e de aquecer a economia pelo acesso ao crédito e cobrança de impostos nos imóveis regularizados sobre a laje.
* Rivail Andrade é professor titular do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Positivo
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