Os 90 anos de Fernando Henrique Cardoso: ciência e política, suas vocações

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* Rodrigo Augusto Prando – Em 18.06.2021, na conjuntura pandêmica que ora vivemos, Fernando Henrique Cardoso (FHC) completará 90 anos. Lançou, não faz muito, mais um livro: “Fernando Henrique Cardoso: Um intelectual na política {Memórias}”, pela Companhia das Letras, na qual rememora sua trajetória intelectual e política. Vale muito a leitura.

Em “Democracia, crise e reforma: estudos sobre a era Fernando Henrique Cardoso” (Editora Paz e Terra, 2010), Celso Lafer – intelectual e amigo de FHC – faz pertinente observação – tomando Norberto Bobbio de empréstimo – quanto à relação dos intelectuais com o poder político. Assevera, assim, que, geralmente, os intelectuais criticam o poder, podem legitimar o poder, podem assessorar o poder e podem, mais raramente, exercer o poder. A biografia de FHC pode muito bem ser descrita à luz desta indicação de Lafer, já que – em FHC – há a sua vida acadêmica, a vida de intelectual público, a vida política e a vida pós-presidência (voltando à academia e aos debates como intelectual público). FHC nasceu no bojo de uma família de militares e de políticos, portanto, desde a infância viu e ouviu acerca da política, com muito diálogo e personagens que marcaram a história do Brasil.

Mudou-se com a família para São Paulo e decidiu cursar Ciências Sociais, na Universidade de São Paulo (USP). Além dos professores franceses que aqui lecionavam, travou contato com seu grande mestre e maior expressão da Sociologia brasileira: Florestan Fernandes. A vida acadêmica de FHC conjugou ensino, pesquisa e participação política nos órgãos representativos da universidade. Sua produção intelectual sempre foi, em volume e qualidade, credenciais na conquista de suas titulações. Seu estudo sobre a escravidão no Brasil meridional trouxe, especialmente, contribuições originais no uso da metodologia dialética para a análise sociológica, fruto de aprofundada leitura da obra de Marx, no famoso “Grupo d’O Capital”. Cardoso chegou ao topo da carreira, conquistando a Cátedra de Ciência Política, todavia, foi, na sequência, afastado da universidade pelo arbítrio do Regime Militar.

Obrigado a sair do país, exilado, FHC estreitou laços com cientistas sociais, economistas e instituições latino-americanas. Trabalhou na CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina – e lá, em parceria com Enzo Faletto, escreveu a obra que lhe deu fama internacional: “Dependência e desenvolvimento na América Latina”. Suas atividades, de ensino e pesquisa, deram-se na Argentina, Chile, França, Inglaterra, Estados Unidos, entre outros países. Um fato importante, neste caso, foi o domínio de outros idiomas como, por exemplo, espanhol, francês e inglês. Ainda sob o Regime Militar, FHC retorna ao Brasil, mas estava impedido de lecionar, pois havia sido aposentado compulsoriamente.

Decidiu, então, fundar o CEBRAP, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, no qual se realizavam pesquisas de Ciências Sociais Aplicadas e, também, servia de espaço de debates e formulações teóricas que, paulatinamente, deslocaram os interesses de FHC do tema do desenvolvimento para o estudo do autoritarismo e da democracia. Foi sua atuação no CEBRAP, bem como sua participação como intelectual público, publicando artigos em jornais, concedendo entrevistas, debatendo a situação política nacional, que chamou a atenção de políticos do MDB. Um convite de Ulisses Guimarães para contribuir com o plano político do partido fez que com FHC e alguns outros intelectuais e pesquisadores se aproximassem da política partidária.

Tomando gosto pela possibilidade de não apenas teorizar e debater, mas também participar ativamente das ações políticas, FHC aceitou candidatar-se ao Senado e com sua votação foi suplente de Franco Montoro. Na ocasião, lecionava nos Estados Unidos e teve oferta de permanecer na universidade numa ótima posição profissional, entretanto, Montoro foi eleito governador de São Paulo e, por isso, FHC assumiu a vaga como Senador da República. Em pouco tempo, seu desempenho o levou a liderança do partido e, ainda, teve participação ativa na Assembleia Constituinte. Na política nacional, Collor foi eleito derrotando Lula, mas não terminou o mandato, renunciando para escapar do processo de impeachment. Itamar Franco, vice de Collor, chega à presidência e FHC tem assento no novo ministério na pasta das Relações Exteriores.

Para um político, também intelectual, conhecido fora do Brasil, dominando idiomas, a função na chancelaria era assaz agradável para Cardoso. Itamar reservou-lhe uma surpresa ao mudar de ministério e lhe atribuiu o Ministério da Fazenda e, no caso, havia um enorme combate a ser travado: a hiperinflação. FHC reuniu um grupo de expressivos economistas e, juntos, criaram o Plano Real que, em tempo breve, foi capaz de debelar a inflação e estabilizar a economia, dando enorme projeção a FHC. A força do Plano Real, a capacidade de leitura do ambiente político e suas qualidades de liderança possibilitaram a FHC a eleição e sua reeleição à presidência. Seus governos não foram isentos de críticas, houve erros, sem dúvida.

No entanto, foram anos de um democrata no poder, com estabilidade institucional, melhoria das condições de vida da população em geral por conta do fim da inflação, universalização do Ensino Fundamental, reforma agrária e fortalecimento do SUS. Os ministros de FHC eram, obviamente, do meio político – por conta do presidencialismo de coalizão – e muitos com vivência acadêmica e intelectual. Sua passagem pela presidência está expressa em várias obras: “A arte da política” e “Diários da Presidência” (em quatro volumes).

Findado seu segundo mandato, afastou-se da vida política partidária e jamais da política nacional. É presidente de honra do PSDB, partido que foi um dos fundadores, e transita em fóruns internacionais com renomadas lideranças políticas. Empresta o peso de seu nome aos temas que considera relevantes, sempre, no caso, com princípios democráticos e valores republicanos. Na pós-presidência, voltou a lecionar no exterior, escreveu muito e foi distinguido com o Prêmio Kluge, da Biblioteca do Congresso dos EUA, que é como um Nobel para a área das Ciências Sociais, no valor de 1 milhão de dólares. No Brasil, foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras e preside a Fundação Fernando Henrique Cardoso, na qual há debates, produções e a guarda do acervo intelectual e político de FHC e de Ruth Cardoso.

Um intelectual na política. Criticou o poder e foi perseguido, aposentado e exilado. Assessorou o poder na construção do plano político do MDB na transição para a democracia. E exerceu o poder, como Senador, líder do partido, ministro e presidente da República. Deixou o poder e voltou para os afazeres que sempre teve: pensar, escrever e debater, o Brasil e o mundo. De qualquer dimensão, a trajetória de FHC é superlativa. Incomum. Há meses, após a repercussão de um almoço de FHC com Lula, um site trazia a seguinte chamada: “Quem é FHC, que almoçou com Lula?”. Quem é? Cientista Social, acadêmico, intelectual público, político e ativista no campo da democracia.

A vida e obra, intelectual e política, de FHC desvendam o Brasil da segunda metade do século XX e das duas primeiras décadas do século XXI. Seu legado está consolidado. Na avaliação de erros e acertos, estes parecem ser bem mais presentes, seja na ciência ou na política, suas vocações, para falar com Weber.

* Rodrigo Augusto Prando é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia pela Unesp

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