Gramofone Douro do Morro

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Mestre

* Paulo de Tarso Porrelli – Eu morava em Lisboa e numa manhã de sábado de céu azul de primavera ouvi, pela Rádio Renascença, um especial sobre a vida e a obra do genial cantor e compositor Luiz Melodia. Do outro lado do Atlântico a forte emoção pareceu-me sonho de gramofone. A voz vibrante do “Negro Gato” cintilou como “Pérola Negra” em minha mente; ora decepcionada com o desserviço musical da maioria das rádios brasileiras.

Peculiaridades para lá, dez anos antes o Luiz Melodia, sempre acompanhado do célebre violonista Renato Piau, tinha shows marcados para uma sexta e um sábado à noite no Teatro Municipal, em Piracicaba, interior paulista.

Eu trabalhava como DJ numa FM da cidade. Os LPs do nosso saudoso gigante da MPB já estavam selecionados. De segunda a sexta eu tocava, das 18 às 19 horas, composições de músicos brasileiros. Os dias eram de inverno e eu usava botas de meio cano elástico, de couro rústico e com solas de pneu, confeccionadas pela “Selaria Record”, próxima à estação rodoviária central.

Encontrava-me sozinho no estúdio. Estava concentrado no meu ofício de levar ao ar alegria, cultura, informação positiva e entretenimento a aguçar o imaginário dos ouvintes. E na mesma medida seguia absorto e embevecido pelo lírico conteúdo poético das letras e arranjos que eu ia mixando nas pontas das agulhas das “sonatas” ao meu dispor. Tínhamos poucos “breaks” comerciais e consequentemente tocávamos mais músicas por hora.

Do trabalho – com ingressos comprados para as duas noites – fui direto para os espetáculos. Sou “rato de plateia”. Arte é meu alimento. Uma vez ajudei a equipe do Gilberto Gil a descarregar todo o equipamento duma comprida carreta e depois me entoquei no backstage até a hora da apresentação num clube local. O lendário contrabaixista Luizão me deu a maior força ao perceber a minha paixão pela música. Gil e Banda estavam em plena turnê de lançamento do épico long play Luar. E eu não tinha dinheiro para comprar o ingresso. Mas deixemos essa prosa para outra hora.

Já passava das quatro da tarde quando me levantei para tomar água e súbito, plantado na porta, estava o Luiz Melodia a observar toda a minha performance; já fazia alguns instantes.

– Bicho, que bota legal a que você veste!

Minha cara de caipira denotou interrogação. Pensei que fosse gozação boa de carioca sangue bom.

– Estou falando sério “italiano”. Onde você a comprou?

A conversa se estendeu por algum tempo e o Melodia me contou também que preparava um novo trabalho musical. E a canção “Passarinho Viu” contaria com a participação da esposa dele; Jane Pinto dos Reis.

Depois dos dois shows eu caí nas madrugadas subsequentes feito anfitrião oficial do artista. Horas agradáveis e inusitadas cravadas eternamente em minha memória.

O tempo passou. Um dia deparei-me com uma entrevista do Melodia à revista Veja. Uma matéria sobre o seu novo disco com o sucesso “Passarinho Viu”. E adivinhem qual era a imagem em primeiro plano na foto do Luiz Melodia recostado numa cama ao lado da mulher e do filho Mahal Reis?! Exatamente: a bota da “Selaria Record”.

 

Salve Luiz Negro Gato

Viva Melodia do Morro

Fizestes canções de fino trato

A este Brasil que pede Socorro

 

 

* Paulo de Tarso Porrelli é escritor e jornalista

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