Recentemente diversos internautas se indignaram com a falta de divulgação do atentado na Somália, em comparação com a repercussão de ataques em países desenvolvidos. Qual a causa dessa seletividade? Serão as desigualdades?
* Mariana Da Cruz Mascarenhas – Nós vivemos num planeta composto por cerca de 7,6 bilhões de habitantes. Dá para pensar neste número em seu sentido literal? Sabe-se que são muitos e que aumentarão ainda mais. Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), a população humana poderá chegar a mais de 11 bilhões até 2100. Quantias difíceis de serem pensadas, mas que se tornam rapidamente fáceis quando considerada apenas a população mais rica da humanidade.
De acordo com dados da ONG britânica Oxfam, divulgados em janeiro de 2017, as oito pessoas mais ricas do mundo concentram a mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial. Ou ainda: o 1% mais rico detém 50% de toda a riqueza mundial. Os dados da ONG foram publicados num relatório intitulado “Uma economia a serviço dos 99%”, que mostra a acentuação das desigualdades, fomentadas por grandes corporações e indivíduos mais ricos que sonegam impostos, reduzem salários e aumentam rendimentos para acionistas.
Mas talvez o que mais incomode a população não seja nem a desigualdade em si, mas o senso da falta de justiça. Em um artigo publicado na revista científica Nature Human Behaviour, chamado “Por que as pessoas preferem sociedades desiguais?”, pesquisadores chegaram à conclusão de que os indivíduos preferem viver em um mundo onde haja desigualdade. Eles chegaram a tal resposta após a constatação de que muitas pessoas se irritam ou se frustram quando inseridas numa situação em que todos são tratados de modo igualitário, independentemente de merecerem ou não tal tratamento, segundo suas próprias concepções de justiça.
Por isso, os pesquisadores ressaltam que, antes de falar em desigualdade, é preciso, primeiramente, entender seu significado, e que sua concepção abrange três defesas distintas: igualdade de oportunidades – independentemente da experiência, orientação sexual, gênero etc. –, igualdade de recompensas – distribuição de benefícios com base na meritocracia – e igualdade de resultados – os quais são os mesmos para todos, independentemente do que tenham feito ou não. A compreensão das distinções é fundamental para a formulação de planos que tentem ao menos minimizar o nível de desigualdade econômica.
Uma das soluções apontadas pelos pesquisadores é focar na população mais necessitada de ajuda. E ao discorrer sobre tal aspecto é preciso chegar à abordagem de que nem todos são beneficiários das mesmas oportunidades, o que dificulta o acesso de muitos aos direitos básicos a alimentação, saúde e educação. Portanto, pensar na redução da desigualdade de oportunidades já se configura um caminho, cujas medidas devem ser amplamente discutidas e, principalmente, colocadas em prática. Pois muito já se fala, mas pouco realmente se faz.
O poder econômico na construção e desconstrução de imagens
Mesmo involuntariamente, nós, seres humanos, tendemos a adotar medidas seletivas e por vezes preconceituosas, regidas por rotulações impostas tanto pela sociedade quanto pelos aparelhos midiáticos. Um exemplo recente é o trágico atentado realizado na capital da Somália, Mogadíscio, onde dois ataques com caminhão bomba deixaram um saldo de mais de trezentas pessoas mortas, no maior atentado terrorista da história, desde o ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, em 11 de setembro de 2001. A autoria da tragédia foi creditada ao grupo islâmico Al Shabaad, que se encontra em conflito com o governo provisório por disputa de territórios. O país é assolado por uma guerra civil desde 1991, quando o ditador Mohammed Siad Barre foi derrubado do poder.
Além da instabilidade política, a Somália é um forte exemplo de país vitimado pela desigualdade econômica e social, especialmente em relação às nações desenvolvidas. O país sofre no momento com uma seca que atinge 3 milhões de pessoas. Quando ocorreu a tragédia do atentado no dia 14 de outubro de 2017, o fato mal repercutiu nas mídias, o que, inclusive, gerou manifestações de indignação e revolta nas redes sociais, pelo descaso midiático com o país. Semanas antes um genocídio cometido por um atirador em Las Vegas, nos EUA, deixando um saldo de 59 mortos, foi suficiente para virar manchete nos principais jornais do mundo.
Aqui percebemos como o poderio econômico, aliado ao midiático, pode ditar as regras e, mesmo sem querer, rotular quais acontecimentos importam mais ou menos. No caso da Somália, essa seletividade se torna ainda mais grave por se tratar da imagem de seres humanos mortos: uma desumanização e inversão de valores.
Em “Sociedade do Espetáculo”, o autor Guy Debord (2003) fala na espetacularização da forma como a vida se anuncia nas sociedades. “Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação” (DEBORD, 2003. p. 13). As imagens estão dissociadas da realidade da vida, traçando seu próprio percurso, uma espécie de verdade construída. Para Debord (2003, p. 13), “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, midiatizada por imagens”.
Pensando na pouca divulgação dos acontecimentos trágicos na Somália, podemos dizer que a mídia utiliza como um dos parâmetros para conferir seu grau de importância aos fatos os próprios níveis de desigualdades sociais, em que os mais poderosos ganham muito mais visibilidade. Afinal, quem chamará a atenção caso sejam vítimas de um atentado, por exemplo? Os 8% mais ricos ou os 50% mais pobres, citados na pesquisa descrita no começo deste artigo? O ser humano então é reduzido ao valor de mercadoria, cuja imagem construída se baseia em suas representatividades.
“Quando hoje nos vemos cercados por uma infinidade de imagens, não nos damos conta de seu poder sobre nós; pelo contrário, acreditamos ser seus senhores e que impomos nossa vontade e nossos desejos sobre elas. Claro que, ao pensarmos assim, agimos de modo infantil, pois não se pode negar o óbvio: somos tão vulneráveis a elas como eram os povos ditos primitivos”, afirma o Prof. Dr. Jack Brandão em sua obra Imagem: reflexo do mundo e do homem?
Portanto, infelizmente, a imposição da imagem fundamentada em poderes econômicos e midiáticos parece ditar os valores e impedir a verdadeira integração humana, mas não podemos perder a esperança e devemos nos inspirar nas palavras do Papa Francisco, quando ele diz:
“Somos convidados a promover uma integração que encontra na solidariedade o modo de fazer as coisas, modo de construir a história. Uma solidariedade que não pode jamais ser confundida com a esmola, mas sim com geração de oportunidades para que todos os habitantes de nossa cidade – e de tantas outras cidades – possam desenvolver sua vida com dignidade”.
(Discurso do Papa Francisco em 6 de maio de 2016)
Referências:
BRANDÃO, Jack. Imagem: Reflexo do mundo e do homem? Embu Guaçu: Lumen et Virtus, 2017.
DEBORD, Guy. Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
* Mariana da Cruz Mascarenhas é jornalista e especialista em Comunicação Organizacional e Metodologia do Ensino na Educação Superior. Mestranda em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas. Articulista e crítica de Economia e Cultura / www.marianamascarenhas.com
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