* Amadeu Garrido – Muito longe, talvez pouco, não o sabemos. Alguns defendem que não é a matéria. Não são nossos corpos. Nossas camas. Nossas mesas. Nosso salário ou lucro e o trabalho. Não há como identificá-lo pela linguagem, a não ser se dermos de barato e chamarmos o numinoso de vácuo. O vácuo não é mundo, é o nada (lá vai o concreto, o nada). Somos escravos da matéria que nos ilude na emanação do vácuo.
Não temos personalidades presas à matéria, não gostamos ou gostamos de doces ou salgados, não somos, “motu próprio”, o que imaginamos ser, somos apenas emanações do vácuo. Claro, vem a lembrança de Platão e de Ficthe. O vácuo está muito além das apreensões transcendentais de Kant, é projeto tão complexo que todos os seus efeitos são díspares. É no vácuo que se formam nosso eu ou nossos eus, já que não há identidade entre eles. Nosso eu não é o material, provindo de interesses, ataques, defesas, lutas, vida e morte. É produzido, ou não, simplesmente caracterizado, lá ou aqui pertinho, no vácuo.
Nosso eu-profundo é o grande mistério envolvido pelas coisas materiais. Até Karl Marx o reverenciou, em sua filosofia idealista, muito embora, com sua incomum capacidade literária, tenha mencionado “idealismo às avessas”, para falar de Hegel, ou o “homem novo”, nada de admirável, que a revolução da igualdade construiria, depois de escapar do capitalismo.
Nunca compreendia muito bem Leibniz e suas mônadas indivisíveis, autônomas e incomunicáveis. Não estariam, porém, elas materializadas no mundo contemporâneo? Há incomunicação mais gritante do que os votos dados ao demônio americano, em número inferior ao da vontade popular, mas que uma velha ficção o conduziu ao poder destruidor?
Nada precário ou passageiro pode ter existência. É uma simples e constante perspectiva do fim. Por que esse eu-fundamental-vácuo não é o mesmo para todos aqueles que chamamos de pessoas? Mais exatamente, de indivíduos, porque todos são distintos em suas individualidades. Não há sequer uma igualdade, nesse imenso espaço modelado pelo tempo, até mesmo entre frutos do mesmo esperma e do mesmo útero. Só semelhanças.
Nosso eu fundamental do vácuo está diante do que neste mundo denominamos de maniqueísmo, teoria formulada por simplificadores do complexo e da dualidade anteposta sem nuances, para comodidade de seus cérebros. Ao contrário, homens, mulheres, árvores, porcos, maçãs, galinhas, flores, são esse formoso caleidoscópio universal que somente produz o engodo da verdade, vinda lá do vácuo, quântico ou não.
Não há nenhuma possibilidade de um mundo comum, mas apenas de metas e fins aproximados, determinados, que o antecessor do vácuo de Ficthe, Emmanuel Kant, considerava “categorias” e às quais preferiu nominar de “razão”. As razões são sempre diferentes, embora não raro se aproximem, para que as categorias materiais provenientes do vácuo possam garantir a sobrevivência do ser e o nada.
Agimos e só interagimos no mundo material. No vácuo somos os únicos eus-profundos e assim temos, ou não, existência, cujas consequências é essa enorme disparidade “concreta”, bela, florida, que, neste planeta, o preenche de polo a polo, porém enganadora, quando todos pensam que seus eus são materiais e a matéria díspar é deles formada. Eles, os fundamentais, em verdade, só determinam, do nada, um destino férreo, que os esquece e perpetram o signo da matéria. Quem assim pensa pode ser tido como um “visionário místico, vendo o mundo como uma fênix renascida das cinzas de sua moradia deteriorada.” (Berlin). Um misticismo eterno. Tal romantismo tende a medrar em momentos como esse, seguinte ao turbulento e terrível século XX e presente neste início do século XXI e suas condições políticas disparatadas, como o Brexit, a “vitória” de Trump, a destruição da Síria, os refugiados e o crescimento da extrema direita em nações do mundo ocidental. Sem o concomitante surgimento de expressivos líderes social-democratas.
No mundo contemporâneo, os eus profundos-vácuo se perderam face às maravilhas de seus próprios efeitos. Por tudo isso é que podemos dizer, em retorno às genialidades gregas que estavam mais distantes ou mais próximas do vácuo, que nosso mundo material será tanto melhor quanto menores os efeitos reflexos do eu-profundo, quanto mais simples as fantasias que acabamos de admirar em sua suprema ilusão do carnaval brasileiro, tal como aquelas que resultam do complexo de todas as manifestações em escala mundial. Creio, que por isso, o crucificado, o eu- mais-profundo e simultaneamente próximo dos outros eus, nada escreveu e falava por parábolas. Encerramos esta crônica, conscientes da profunda perplexidade do homem de hoje e, em especial, do brasileiro.
* Amadeu Roberto Garrido de Paula, é Advogado e membro da Academia Latino-Americana de Ciências Humanas
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