Da Redação – O calendário marca junho e as mudanças começam a ser sentidas na região do Médio Solimões, estado do Amazonas. O nível da água na várzea não é mais o mesmo e pelos próximos cinco meses só vai diminuir. É tempo de se mover e os peixes-boi amazônicos (Trichechus inunguis) sabem disso. Começa então uma jornada rumo ao lago Amanã, dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã, que não seca mesmo em anos de seca extrema e serve de refúgio contra a caça predatória e o encalhe para esses mamíferos aquáticos.
Um grupo de pesquisadores analisou durante 11 anos o trajeto de peixes-boi amazônicos para entender melhor o papel da variação da profundidade das águas nesse processo migratório. “Peixes-boi possuem um mapa cognitivo atualizável do ambiente e são comportamentalmente plásticos”, argumenta o estudo realizado conjuntamente pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Instituto Mamirauá – unidades de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações – e Universidade de Oxford e Universidade de São Paulo (USP).
Os resultados da pesquisa estão no artigo “Gargalos na rota migratória do peixe-boi amazônico e a ameaça das barragens hidrelétricas”, publicado, em inglês, na última edição da revista especializada Acta Amazonica. Veja aqui. Os “gargalos” do título são os trechos mais rasos no sentido áreas de várzea-lago Amanã e que secaram no final da maioria das vazantes. Um verdadeiro bloqueio na rota de fuga desses animais. “Os peixes-boi começaram a migração em tempo justo para atravessar os gargalos mais distantes, sugerindo que a sintonizaram para maximizar o período se alimentando sem comprometer a segurança”, relata o artigo, coordenado pelo pesquisador do INPE, Eduardo Moraes Arraut.
“Esperar muito para fazer a travessia pode impedir a passagem dos peixes-boi pelo gargalo migratório. Por outro lado, sair bem antes da vazante significa ficar menos tempo se alimentando. Eles precisam acumular gordura pra aguentar a época seca, quando o alimento é escasso”, informa Arraut. “Pelo monitoramento, nós identificamos que os peixes-boi passam por esses gargalos migratórios em média quatro, três e às vezes dois dias antes do gargalo secar”.
O levantamento de dados do estudo foi feito pelo acompanhamento de 10 exemplares machos de peixes-boi amazônicos. Eles foram rastreados através da emissão de sinais emitidos por radiotransmissores adaptados à cauda por meio de cintos. O sistema tecnológico, chamado telemetria, é conduzido por equipes do Instituto Mamirauá. Os pesquisadores também recorreram a 30 anos de imagens de satélite do território estudado, 14 de hidrografia e um modelo 3D de medição de profundidade de rios e lagos.
Os dados indicam que os peixes-boi amazônicos sabem o momento certo da partida para o lago Amanã, uma decisão que parece se relacionar diretamente com a noção de profundidade nos gargalos migratórios. “Eles têm uma grande percepção do ambiente todo, são animais que vivem em uma água turva e conseguem decidir quando é o momento de partir”, afirma Miriam Marmontel, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá e integrante da pesquisa.
Miriam acredita que, além do aspecto profundidade, o sistema de percepção de Trichechus inunguis se dá por uma combinação de fatores, como a química das águas de várzea, que lhes servem de ambiente, a variação de quantidade de nutrientes de acordo com a mudança das estações e a própria profundidade. “Os peixes-boi possuem pelos bem ralinhos ao longo do corpo e pelos mais modificados na face, vibrissas (conhecidas popularmente como “bigodes”), que são poderosos órgãos sensoriais”, diz.
Barragens – Além dos gargalos migratórios, formações naturais, temporárias e a que os peixes-boi amazônicos da região das Reservas Amanã e Mamirauá já estão habituados, o futuro aponta para outros, muito mais perigosos, se os planos de construções de barragens hidrelétricas na Amazônia se concretizarem. “As barragens criariam mais gargalos e regimes de inundações menos previsíveis, dificultando a migração e consequentemente aumentando a mortalidade dos peixes-boi”, assinala a pesquisa. Um problema não apenas para esses mamíferos, mas também para botos, ariranhas e várias espécies de peixe que vivem nesses ecossistemas.
De acordo com artigo publicado recentemente na revista Science, existem 416 usinas hidrelétricas em operação ou construção em toda bacia amazônica. Outras 334 foram propostas ou estão em fase de planejamento.
Pesquisas como o monitoramento dos peixes-boi amazônicos no processo migratório fornecem informações sobre um cenário com ameaças de mudanças irreversíveis. “Até recentemente não se tinha o ‘antes’, ficava difícil dizer o quanto as barragens afetaram a biodiversidade, mas agora estamos começando a ter experiência e a oportunidade de analisar as barragens antes de serem construídas”, conta Miriam Marmontel.
Em abril de 2016, uma e-letter (carta eletrônica) escrita pela pesquisadora e por Eduardo Arraut e também publicada na Science já levantava um alerta sobre o modelo dos projetos energéticos na Amazônia e o futuro dos peixes-boi. Esses animais de reprodução lenta (uma fêmea gera, em média, um filhote em três a cinco anos) já foram abundantes na região, mas depois de 200 anos de caça comercial, a espécie sofreu um colapso populacional e corre o risco de desaparecer. “A busca pelo crescimento econômico da América do Sul, em geral, e do Brasil, em particular, não deve vir às custas da extinção do peixe-boi amazônico”, afirma a carta (acesse o conteúdo completo aqui).
Estimativa – Para a pesquisadora do Instituto Mamirauá, o estudo também pode abrir caminhos para resolver uma das grandes questões ainda não respondidas sobre o peixes-boi amazônicos: quantos ao certo existem. “O lago Amanã não é o único lago que serve de refúgio para todos os peixes-boi amazônicos que estão em várzea, existem dezenas de outros”, diz. “Se monitorarmos esses animais nos diversos pontos de refúgio durante a vazante e a seca, a gente vai começar a ter uma ideia de abundância em locais pontuais e aí a partir disso pode ser desenvolvido um modelo matemático que faça uma estimativa para a área toda, até porque a Amazônia não é uma só”.
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