Estudantes não são robôs!

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* Gilberto Giusepone – “A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém, ela seria igualmente questionável se ficasse nisso, produzindo nada além de pessoas bem ajustadas”
“A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica” (Theodor Adorno, Educação e emancipação)

A Base Nacional Comum Curricular, BNCC, reaparece na mídia como matéria que está para entrar em vigor, segundo o Ministério da Educação, após “ampla discussão”. Tramitará ainda junto ao Conselho Nacional de Educação e a Câmara dos Deputados. Mas sua divulgação já corre por conta de seus apoiadores. Segmentos empresariais que têm atuado no campo da educação estão empreendendo esforços para propagar a BNCC.

Já tivemos, inclusive, editorial da grande mídia paulista indicando as mudanças “necessárias” que agora serão levadas a cabo por obra da reconfiguração curricular que se volta ao ensino fundamental, enquanto se prepara a conclusão do processo de intervenção no ensino médio. É necessário afirmar desde o início que a formulação da BNCC deixou-se impregnar pela “opinião educacional” desses setores empresariais que, por isso mesmo, investem agora na sua divulgação.

Essa aproximação entre BNNC e empresariado maneja conceitos com impressionante superficialidade, sintetizando no fundamento gerencial aquilo que denominam de principal problema da educação brasileira. Essa aproximação está em curso há tempos.

O ano de 2017 foi anunciado como o momento no qual a BNCC seria tirada do papel. O contexto político atual permitiu ao país constatar um crescente protagonismo dos atores empresariais dentro do Ministério da Educação e nas Secretarias de Educação que se configuram no processo eleitoral pós impeachment.

Na forma como se apresenta, a BNCC tem lado. Ignora, por exemplo, a espinha dorsal dos debates feitos pela área de educação infantil, que sempre resistiu à escolarização precoce da criança pequena. Apresenta objetivos e metas de alfabetização que ignoram as pedagogias da infância que a muito custo passaram a fazer parte do debate brasileiro.

Adere a um vocabulário técnico operacional que a tudo “biologiza” como, por exemplo, nos conteúdos que contêm o elogio das chamadas habilidades sócio emocionais, retomando a onda da qualidade total que permeou debates ministeriais na década de 1990. No caso do ensino de história, que foi objeto de polêmica recente à medida que o ensino de história da África na proposta foi considerado demasiado amplo a ponto de ofuscar as raízes europeias de nossa história, a BNCC consolidou diretrizes bastante impregnadas desse triunfante “senso prático”.

A proposta é baseada no encolhimento das análises temáticas (permeáveis ao debate ideológico) com o objetivo de retomar a linearidade cronológica como aquilo “que faz da história, a história”. Isso diz respeito a encadear datas, estabelecer a sucessão de efemérides e esconjurar as tentativas de dar visibilidades aos invisíveis na história. É como se o Estado advertisse: os que são invisíveis não existem. Portanto, não procurem por eles.

A BNCC opta por acolher o incômodo dos setores conservadores e, em decorrência, as bases não se ocupam das questões de gênero e relacionadas à sexualidade. No embate que tivemos a respeito das questões de gênero a BNCC concedeu vitória ao conservadorismo crescente banindo o tema de seus conteúdos. É uma versão que vai à Câmara dos Deputados para debate e ratificação com garantia de que os temas afeitos à diversidade e às diferenças não estão dispostos de modo a “atrapalhar”. Ou não estão, ou estão com mutilações que geram conteúdos anódinos.

É paradoxal que as bases nacional-curriculares de um país não tenham uma nação a permear seus propósitos, mas sim um vocabulário de eficiência produtiva a ser assimilado por professores aplicadores, não exatamente educadores. Senão, o que seria exatamente “configurar a escola fundamental para extrair competências”? E como concatenar a extração de competências com uma ordem ministerial: a sala de aula “deverá” reger-se pelas bases (que se tornam assim diretrizes?). A escola nacional será padronizada, pelo menos na percepção dos que promulgam a BNCC.

Mas se alguém quiser saber o alcance dessa padronização deverá combinar a análise com outras manifestações ministeriais, para então compreender que no momento em que o Ministério da Educação fala em padronização seu foco se dirige, na realidade, à formação de professores. Terão que ensinar o que está nas bases. Assim essas se projetam como instrumento de controle, não exatamente sobre o que se deve ensinar, mas em primeiro lugar, daquilo que não se deve trazer para a sala de aula.

O pressuposto ministerial de que os alunos “aprenderão se for definido o que será ensinado” se esvazia, ou se restringe ao ímpeto autoritário de quem o proclama, porque temos anos de acúmulo analítico para saber que os déficits de aprendizagem são multifatoriais e não é na delimitação de conteúdo que esse complexo tema se resolve. No fundo, temos nova edição da antiga estratégia: “o aluno haverá de aprender apesar dos professores e a despeito dos ideólogos”.

A BNCC cria para si uma armadilha. Tende a gerar um modo de trabalhar para atender aos exames que avaliam como se trabalha. São as contradições das avaliações de larga escala que impedem que a micro escala revele o que o cotidiano tem de mais verdadeiro, que é a voz dos que “não conseguem”. A BNCC quer fixar 60% do obrigatório e admitir 40% de criatividade conforme a circunstância.

Isso seria um indício de pluralidade se os processos de avaliação e, principalmente, de financiamento, não incidissem apenas sobre os 60%. Ou seja, a diversificação que se move com base nas promessas de que as autonomias serão respeitadas, no fundo, não valem, porque sequer são consideradas. Isso tudo prepara a chegada da proposta para o ensino médio que deve, ao que tudo indica, institucionalizar um grande obscurantismo.

* Gilberto Giusepone é diretor do Cursinho da Poli e presidente da Fundação PoliSaber

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