* Murilo Valle – Historiadores afirmam que antes da chegada dos europeus à América havia aproximadamente 100 milhões de índios no continente. Só em território brasileiro, esse número chegava 5 milhões de nativos, aproximadamente. Estes índios brasileiros estavam divididos em tribos, de acordo com o tronco linguístico ao qual pertenciam: tupi-guarani (região do litoral), macro-jê ou tapuia (região do Planalto Central), aruaque (Amazônia) e caraíba (Amazônia).
Atualmente, calcula-se que apenas 400 mil índios ocupam o território brasileiro, principalmente em reservas indígenas demarcadas e protegidas pelo governo. São cerca de 200 etnias indígenas e 170 línguas. Porém, muitas delas não vivem mais como antes da chegada dos portugueses. Frente a má qualidade de muitos materiais didáticos utilizados nas escolas e pela latente desinformação e/ou sensacionalismo criado pela mídia, criou-se em torno do índio visões de extremo preconceito que não condizem com a realidade.
A imagem que se tem dos índios é baseada em estereótipos, ou seja, ideias falsas que igualam e colocam sob um mesmo rótulo um sem número de situações diversas. Tem-se que o índio “ideal” deve ser forte, bonito, deve andar nu, não pode falar português, não deve gostar de óculos escuros, nem beber Coca-Cola. Deve, ainda ter lindos dentes, andar com o corpo pintado e enfeitar-se com penas. Esse é o “índio de verdade”.
Saindo desse padrão imaginário, criado muito distante de toda a complexidade de inúmeras situações a que são submetidos os povos indígenas brasileiros, os índios conhecidos não são “índios de verdade”, ou então são “índios civilizados”, “índios aculturados”. A superação dessa visão estigmatizada contribui para a promoção do conhecimento da diversidade étnica indígena e o consequente respeito às formas de vida e cultura desses povos mas, por outro lado, observa-se que esta superação encontra muitas resistências, inclusive no campo da educação, a partir do momento que a contextualização da questão indígena é notadamente estigmatizada.
Dentre as diversas formas atuais que as comunidades indígenas sofrem pressão do “homem branco”, destacam-se as obras de infraestrutura. No Brasil, tem havido justa e importante notoriedade os conflitos relacionados à construção da usina Belo Monte. Os planos de construção de uma hidrelétrica no rio Xingu remontam aos anos 70. Em 2010, finalmente a obra foi leiloada. O consórcio vencedor, a Norte Energia, reúne empresas privadas e públicas e tem como maior acionista o grupo estatal Eletrobras, com 49,98% de participação. O consórcio está investindo R$ 28,8 bilhões na usina, quase 80% financiados pelo BNDES, e terá receita de R$ 62 bilhões em 35 anos com a venda de energia.
Belo Monte terá potência instalada de 11.233 MW, o que a torna a terceira maior hidrelétrica do mundo, no entanto, produzirá em média cerca de 4.500 MW ao longo do ano, pois seu reservatório de 503 quilômetros quadrados é pequeno para esse tipo de empreendimento. O objetivo de uma barragem menor foi reduzir o impacto social e ambiental, ainda assim, ambientalistas e movimentos sociais consideram a obra uma tragédia para a população e o ecossistema da região.
A primeira turbina começou a funcionar em fevereiro/2016, mas apenas em 2019 a hidrelétrica deve entrar totalmente em operação. Em dezembro/2015 o Ministério Público Federal (MPF) iniciou processo judicial na Justiça Federal em Altamira em que busca o reconhecimento de que a implantação de Belo Monte constitui uma ação etnocida do Estado brasileiro e da concessionária Norte Energia, “evidenciada pela destruição da organização social, costumes, línguas e tradições dos grupos indígenas impactados”.]
A ação etnocida comprovada por longa investigação do MPF acaba por ser potencializada com a recente permissão de operação, por conta do descumprimento deliberado e agora acumulado das obrigações de todas as licenças ambientais que a usina obteve do governo. Mais recente, março/2016, o MPF ajuizou ação civil pública pedindo paralisação emergencial do barramento do Rio Xingu por agravar a poluição do rio e do aquífero da cidade de Altamira com esgoto doméstico, hospitalar e comercial, já que a condicionante de implantação de saneamento básico, que evitaria esse impacto, até hoje não foi cumprida.
Nas licenças ambientais, assim como nas propagandas da Norte Energia S.A, a promessa era de que a cidade teria 100% de saneamento antes da usina ficar pronta. Até hoje, Altamira continua sem sistemas de esgoto e água potável. Mesmo sabendo disso, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) liberou a operação da usina e o barramento do rio Xingu no final do ano passado. Na Licença de Operação, emitida em novembro de 2015, o Ibama deu prazo até setembro de 2016 para que o saneamento de Altamira esteja concluído, mas, enquanto isso as populações padecem no enfrentamento da falta de saneamento básico.
Por que o Brasil precisa da usina de Belo Monte? Por que não envidar esforços e recursos a matrizes energéticas que incidem em menor impacto ambiental? Por que a robusta Lei Federal nº 6938/81, que institui a Política Nacional de Meio Ambiente, não funciona neste caso, uma vez que preconiza o desenvolvimento sustentável. Em quais premissas estabelece-se o Planejamento Energético brasileiro?
A persistência em construir Belo Monte está baseada numa sólida estratégia de argumentos dentro da lógica e vantagens comparativas da matriz energética brasileira, considerando que os rios da margem direita do Amazonas têm declividades propícias à geração de energia, e o Xingu se destaca, também pela sua posição em relação às frentes de expansão econômica (predatória) da região central do país.
O desenho de Belo Monte foi revisto e os impactos reduzidos em relação à proposta da década de 80, mas, mesmo assim, além dos impactos diretos e indiretos, Belo Monte é um estopim, porque outras barragens virão depois, modificando totalmente e para pior a vida na região, que implica diretamente no povo indígena. A hidrelétrica vai comprometer o escoamento natural do rio, o que pode afetar gravemente a flora e a fauna local; a obra pode destruir igarapés que cortam cidades importantes do interior do Pará, como Altamira e Ambé; as áreas de agricultura de pequeno porte serão inundadas e muitos produtores já perderam suas posses; também pode comprometer o transporte fluvial em algumas áreas e isolar totalmente centenas de comunidades ribeirinhas; o alagamento permanente de áreas deverá destruir milhões de árvores e comprometer a vida de muitas espécies de peixes; e, de forma contundente, o projeto incide em pressão por desapropriação de terras indígenas, protegidas por lei.
Estudos apontam que as outras usinas hidrelétricas do Brasil são subutilizadas e que a otimização das existentes poderia dispensar a construção de uma obra tão danosa ao meio ambiente, associando, principalmente, a adoção planejada de outras alternativas viáveis no território brasileiro. Belo Monte é um tema sensível a pelo menos três pontos da política de desenvolvimento brasileira: o aspecto social, econômico e ambiental. A política de desenvolvimento do Brasil, que hoje figura como potência mundial, precisa incorporar os valores socioambientais na escala de prioridade devida, começando pelo cálculo do PIB, que deveria incorporar os custos ambientais e sociais das obras de infraestrutura.
Por isso, nesse dia do Índio, muito além de curtir seus infantis familiares e entes queridos vestidos com cocares e pinturas no rosto, vale a pena refletir o que nosso comportamento urbanoide reflete e implica na vida destes brasileiros. É fácil criticar e olhar os índios de forma pejorativa, difícil é assumir as responsabilidades que resultam nesta condição.
* Prof. Murilo Valle é Doutor e Mestre em Geologia pela IGc/Universidade de São Paulo e Coordenador do Curso de Engenharia Ambiental – FAENG/Fundação Santo André. Contato com o colunista murilovalle@hotmail.com
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