Busca domiciliar e a decisão da Sexta Turma do STJ

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* Ícaro Batista Nunes e ** Matheus Campos – Em 2 de março de 2021, quando do julgamento do habeas corpus nº 598.051/SP, de relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que os agentes policiais, caso necessitem entrar em uma residência para investigar a ocorrência de eventual crime e não possuam o devido mandado judicial, devem registrar a autorização do morador em vídeo e áudio como forma de comprovar o consentimento necessário.

O importante voto do Ministro Rogerio Schietti Cruz se inicia com a célebre exortação de Conde Chatham, ao dizer que: “O homem mais pobre pode em sua cabana desafiar todas as forças da Coroa. Pode ser frágil, seu telhado pode tremer, o vento pode soprar por ele, a tempestade pode entrar, a chuva pode entrar, mas o Rei da Inglaterra não pode entrar!” (William Pitt, Earl of Chatham. Speech, March 1763, in Lord Brougham Historical Sketches of Statesmem in the Time of George III First Series (1845) v. 1).

A Corte Superior analisou um caso concreto em que o réu havia sido condenado, inclusive em segunda instância, ao cumprimento da pena de um ano e oito meses de reclusão, em regime inicial aberto, pela suposta prática do crime de tráfico de drogas, pois o réu teria, em depósito, para fins de comércio, 72 invólucros plásticos de maconha, pesando, ao todo, 109,9 gramas.

A defesa pleiteou a ilicitude das provas. Isso porque os policiais teriam adentrado ao domicílio do réu sem mandado judicial, alegando ter havido consentimento do réu para a busca em sua residência. No entanto, o réu negou qualquer tipo de concessão.

Ao julgar o caso concreto, a Corte Superior inaugurou importante precedente, o qual determina que ao Estado incube o ônus de provar o livre consentimento do morador para o ingresso domiciliar, sendo o devido registro audiovisual o melhor meio para tanto, de modo que não haverá dúvidas quanto à legalidade da ação estatal como um todo e, particularmente, quanto ao livre consentimento do morador.

Naquela oportunidade, ainda, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu o prazo de um ano para a estruturação do aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal.

Trata-se de importantíssimo precedente inaugurado pelo STJ e que, caso seja devidamente implementado e efetivado na prática forense, não somente fará com que se garanta maior segurança aos indivíduos sujeitos a tal medida invasiva, bem como aos policiais, que, por sua vez, deixariam de assumir o risco de cometerem crime de invasão de domicílio ou de abuso de autoridade, principalmente quando a diligência não tiver alcançado o resultado esperado.

Nessa toada, cabe ressaltar que, segundo as estatísticas trimestrais da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP/SP), foram realizadas, em 2020, apenas no estado de São Paulo, mais de 11 milhões de abordagens policiais. Do total, menos de 1% resultou em prisão em flagrante.

Em outras palavras, significa dizer que, apenas no ano de 2020 e sem nenhuma fundada razão (justa causa), a Polícia Militar do Estado de São Paulo violou a liberdade e a intimidade de 10.890.000 pessoas.

Isso demonstra um patente descomprometimento com uma cultura democrática e republicana, tão necessárias para a garantia de direitos fundamentais e a efetivação do nosso texto constitucional e de tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

E a experiência empírica não nos deixa concluir de outra maneira, senão que os mais afetados por essas violações são pessoas em situação de vulnerabilidade.

Nas palavras do Ministro Rogerio Schietti Cruz: “(…) A situação versada neste e em inúmeros outros processos que aportam a esta Corte Superior diz respeito à própria noção de civilidade e ao significado concreto do que se entende por Estado Democrático de Direito, que não pode coonestar, para sua legítima existência, práticas abusivas contra parcelas da população que, por sua topografia e status social e econômico, costumam ficar mais suscetíveis ao braço ostensivo e armado das forças de segurança.”.

Não por outro motivo, é comum, na prática forense, depararmos com arbitrárias violações de domicílio, nas quais os agentes estatais afirmam que houve o consentimento do morador, agora réu na ação penal, enquanto a pessoa acusada afirma categoricamente que não consentiu com a entrada dos policiais em sua residência.

Afinal, como bem destacou o Ministro Rogerio Schietti Cruz em seu voto: “(…) É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos”.

E, continua: “(…) A seu turno, as regras de experiência e o senso comum, somadas às peculiaridades do caso concreto, não conferem verossimilhança à afirmação dos agentes castrenses de que o paciente teria autorizado, livre e voluntariamente, o ingresso em seu próprio domicílio, franqueando àqueles a apreensão de drogas e, consequentemente, a formação de prova incriminatória em seu desfavor.”.

É certo que o precedente inaugurado pela 6ª Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça trará maior segurança jurídica ao julgador e garantirá, com maior efetividade, os direitos constitucionais e humanas de intimidade à moradia.

* Dr. Ícaro Batista é graduado em Direito pela Facamp e pós-graduado em Processo Penal pela Universidade de Coimbra, especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas e está fazendo mestrado, também em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas, com o tema “Lavagem de dinheiro em escritórios de advocacia”. ** Dr. André Gomes – Advogado formado em Direito pela PUC-Campinas. Integra o escritório IBN Advogados, especialista na área criminalista.

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