Um sonho de ordem diante do caos: o papel da matemática em uma pandemia

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* Felipe Schroeder Franke – De todas as dúvidas que temos sobre a pandemia, a pergunta sobre até quando seguiremos em isolamento social é, provavelmente, uma das mais frequentes. Neste início de maio, a população de Porto Alegre chegará no 50º dia de quarentena, e, à parte algumas flexibilizações, a previsão é de que assim sigamos por um bom tempo.

Por mais que o cenário ainda seja de bastante incerteza, tais medidas não precisam ser definidas no escuro. Da epidemiologia às engenharias, há inúmeros profissionais que auxiliam nas tomadas de decisão. E, de todas as áreas envolvidas neste processo, talvez nenhuma seja tão fundamental em uma pandemia como a matemática.

O modelo SIR

A epidemiologia é a ciência que estuda a dinâmica e a prevalência de doenças nas populações. Embora ela seja, na prática, uma ciência da saúde, ela é, em grande parte, fundamentada em cálculos. Epidemiologia e matemática caminham lado a lado na história da medicina. Exemplos clássicos são a epidemia de cólera no Reino Unido, no século XIX, e a vacina contra a varíola.

Uma das contribuições mais essenciais da matemática para a epidemiologia – e especialmente útil em casos como a pandemia atual – é o modelo SIR. Nele, dividimos determinada população N (de um condomínio, de uma cidade, de um planeta) em três grupos. O primeiro são os suscetíveis (S): todas as pessoas que podem contrair determinada doença. Depois vêm os infectados (I), ou seja, indivíduos que contraíram a doença. O último grupo é dos recuperados (R), que são todas as pessoas que tiveram e superaram a doença.

Os valores de S, I e R não são fixos. À medida que uma epidemia avança, mais e mais suscetíveis se tornam infectados, e muitos infectados também se recuperam. Ou seja, temos variáveis que mudam de valor ao longo do tempo. Matematicamente, isso é representado através da expressão:

N = S(t) + I(t) + R(t)

Essa expressão é resolvida, para cada instante do tempo, através de um sistema de equações diferenciais, e é graficamente representada em curvas. Uma delas é justamente a curva de infectados que tanto temos visto no noticiário.

A grande utilidade do modelo é delinear o comportamento de uma infecção em uma população. Ao fazer isso, ele nos permite, entre outras coisas, estimar quando ocorrerá o pico de doentes e  quando a população, como um todo, já pertencerá ao grupo dos recuperados. É também a partir de dados de modelos assim que se determina o R0 de uma doença – isto é, quantos suscetíveis um infectado pode infectar.

Modelos alternativos

Ao longo do tempo, este modelo básico vem ganhando novas versões para representar, com crescente fidelidade, diferentes situações epidemiológicas.

Um modelo alternativo cria o grupo dos expostos (E) entre os suscetíveis e os infectados. Aqui, estariam as pessoas expostas a uma doença, que podem se tornar vetores de disseminação. Esse acréscimo é particularmente relevante para uma pandemia como a da Covid-19, na qual os assintomáticos muito provavelmente são capazes de infectar os suscetíveis.

Outro exemplo relevante para se ter em mente na Covid-19 é o modelo SIS. Nele, um indivíduo infectado, ao superar a doença, retorna ao grupo dos suscetíveis. Trata-se, portanto, de um modelo no qual não há imunidade. Como já discutimos aqui, a imunidade contra o SARS-Cov-2 ainda é uma questão em aberto: é provável que um indivíduo que superou a Covid-19 se torne imune, mas não para sempre. Isso implicaria um modelo misto entre o SIR e o SIS, sobretudo se pensarmos na pandemia ao longo de alguns anos.

Uma importante variante são os modelos que contemplam as vacinas. Matematicamente falando, as vacinas reduzem o número de suscetíveis, uma vez que um indivíduo vacinado não tem mais a possibilidade de se infectar. Essa redução é particularmente relevante para a dinâmica de uma pandemia pois, com menos indivíduos suscetíveis, altera-se a taxa de aumento dos infectados. Lembremos que os modelos são sistemas de equações interdependentes, e não entidades isoladas umas das outras.

Os modelos requerem dados reais

Os modelos são representações artificiais da realidade – e, como tais, não contemplam a complexidade de uma pandemia. Os modelos mais avançados se tornam crescentemente complexos, e se esforçam para retratar as características de cada caso.

Na Covid-19, por exemplo, o grupo dos suscetíveis poderia ter um subgrupo com os indivíduos do grupo de risco, que são mais suscetíveis. Também pode ser importante diferenciar entre os infectados que desenvolvem quadros amenos daqueles que necessitam de suporte hospitalar avançado.

Porém, mesmo o mais completo dos modelos depende de dados reais e precisos para entender como se dará a dinâmica em determinado local. O caso mais evidente é a contagem do número de infectados – sabidamente subnotificados em muitos locais do mundo, e em especial no Brasil. Tão mais exatos forem os dados, tão mais preciso será nosso modelo na tarefa de prever como se comportará a pandemia daqui em diante.

De acordo com a segunda etapa do estudo epidemiológico da UFPel, a estimativa é que o número de infectados no Rio Grande do Sul seja 12 vezes maior que o número oficial.

Nem mesmo o número de mortes pela Covid-19 é um número preciso, e isso não acontece apenas no Brasil. Muitos fatores contribuem para isso, como carência de testes, demora na liberação de laudos, ou mesmo o colapso dos sistemas sanitário e funerário.

Reconhecendo essa limitação, a Economist vem trabalhando com um método baseado nas “mortes excedentes”. A ideia consiste somar o total de óbitos de determinado país e comparar com a média histórica recente de óbitos do mesmo local. A diferença entre os dois números seria o verdadeiro saldo de mortos pela Covid-19: contempla tanto as mortes causadas diretamente pelo SARS-CoV-2 como as mortes indiretas, ocorridas em casos de pacientes de outras doenças que não receberam atendimento médico devido à superlotação pela pandemia.

O método das mortes excedentes foi recentemente defendido pelo epidemiologista Paulo Lotufo, em entrevista ao jornalista Theo Ruprecht.

Probabilidades em meio às incertezas

Uma importante mensagem dos modelos matemáticos é que aquilo que fazemos, como sociedade, pode alterar o curso de uma pandemia. Quando um governo determina o isolamento social, e isto é seguido pela população, altera-se a taxa de variação entre S e I. Isso acontece pois, com menor interação social, o R0 do vírus reduz, e com isso achata-se a curva de infecção.

No entanto, os modelos não devem ser vistos como um exercício de futurologia. Por mais refinados que sejam, eles são uma representação sempre incompleta da realidade. Essa incompletude deriva tanto das limitações próprias de cada modelo (é impossível representar todas as variáveis em um mesmo modelo) quanto da nossa própria ignorância acerca da Covid-19.

Isso tudo requer prudência quando formos lidar com modelos, sobretudo nos debates travados na esfera pública. No início da pandemia, um estudo epidemiológico do Imperial College de Londres traçou cenários que variavam entre dezenas de milhares até mais de um milhão de mortes no Brasil.

Um pouco depois, em meados de abril, a revista Science publicou uma série de projeções, entre as quais os analistas estendiam períodos de isolamento social até 2022. É importante entender que este estudo foi feito com base em diferentes cenários, os quais são resultado das nossas incertezas sobre o próprio vírus. Por exemplo, o abissal desconhecimento sobre o número total de infectados e de óbitos impede que saibamos, ao certo, as taxas de infectividade e de mortalidade da Covid-19. Sem esses dados, os cientistas são obrigados a traçar diferentes cenários, cada um com premissas e hipóteses próprias, gerando projeções bastante variadas.

As previsões do Imperial College para este início de maio no Brasil vão de 1 mil a 5 mil mortes semanais. Porém, como o próprio noticiário nacional deixa evidente, o Brasil vive realidades que vão do colapso sanitário amazonense ao plano de retomada do futebol profissional gaúcho. Nossas brutais diferenças demográficas desempenham, afinal, papel decisivo no alastramento da pandemia.

No último dia 3 de maio, o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino resumiu e analisou algumas das diferentes projeções para o Brasil, enfatizando a influência das subnotificações de casos. Sua análise deixa claro o papel do isolamento social em controlar a pandemia. Vale aqui observar que a queda dos números de infecção e óbito decorrente de medidas de isolamento social pode causar a falsa impressão da inutilidade da quarentena – fenômeno lógico definido como o paradoxo do isolamento.

Um modelo matemático, quando bem executado, fornece informações preciosas para governos e instituições ligadas às decisões na pandemia. Porém, estas informações são, mais que certezas, cálculos de probabilidade. Enquanto ainda estivermos aprendendo sobre o SARS-Cov-2, seguiremos na busca de um bom modelo para ele, e aprendendo a lidar com todas as incertezas aí envolvidas.

* Felipe Schroeder Franke é jornalista e estudante de Medicina na UFRGS.

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