* Amadeu Garrido de Paula – Na interpretação da história a passagem do tempo é uma poderosa ferramenta reflexiva. O calor do momento obnubila a autenticidade da visão. São fortes as paixões e as intolerâncias. Passado o tempo e como se estivéssemos a analisar o mundo de um laboratório localizado em outro planeta.
Serenamente, constata-se que 1964 correspondeu a uma ruptura da democracia brasileira, a uma ditadura que se consolidou progressivamente, armou-se de ferros em 1968, com a edição do AI n. 5, alimentou seus órgãos de repressão a sangue jorrado, principalmente de nossos jovens, matou, sufocou a imprensa e todas as liberdades públicas, e são irreparáveis suas infâmias, sobre as quais nenhuma lei de anistia passa um cômodo mata-borrão.
Paradoxalmente, a ditadura militar não espezinhou os direitos dos trabalhadores, da grande massa que não vive, mas sobrevive, de salários. A esse enorme contingente, milhões de esfomeados, a democracia ofertou presentes de grego. Não se mede a desgraça somente pelo desemprego ou subemprego, mas principalmente pela renda ínfima, que se soma à falta de políticas públicas de saúde pública, saneamento, educação e outros equipamentos sociais indispensáveis, sem os quais não se pode falar em direito como equidade e justiça, essencial à vida dos povos.
Sob a ditadura militar não houve tanta destruição dos direitos sociais, que hoje nos sufoca. Sob ela foi criado o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, instituição inicialmente repelida pelos defensores do direito do trabalho sob o ângulo operário, atualmente um valor de altíssima importância para a sociedade laborativa brasileira; o Funrural, que os “democratas” de hoje pretendem acabar. O PIS, em que pese suas insuficiências demagógicas. Mas o importante é que, em nenhum momento, o governo militar sequer ameaçou demolir o direito do trabalho.
No belo mundo da democracia – que muitos limitam a urnas periódicas – há não muito tempo – deram fim aos dissídios coletivos e ao poder normativo da Justiça do Trabalho, já enfraquecido por decisões iníquas do TST. Os processos dissidiais dependem de consenso entre autor (empregados) e réu (empregadores). Faz-se um teatro nos Tribunais regionais, para que a cúpula abaixe os panos.
A incorporação das conquistas sindicais aos contratos de trabalho, em ordem a viger até que nova convenção coletiva substitua a vencida (ultratividade), foi decomposta por uma das decisões mais indecentes do Ministro Gilmar Mendes; em ação de descumprimento de preceito fundamental, cuja competência para conceder liminares é do Pleno do STF, o ministro plutocrata apressou-se em concedê-la em favor de uma Confederação Patronal, sem forma nem figura de direito, segundo remansosa jurisprudência do STF, sob o argumento de uma invisível importância e urgência. Deveria levá-la ao Plenário do STF nas sessões seguintes. Dormita há anos em seu gabinete. E os sindicatos se arrastam frente aos empregadores, porquanto o que haviam conquistado virou pó. Tudo a ser reconquistado.
A obra idealizada, cujas principais cabeças tem nome – Gandra Martins e Gilmar Mendes – e um instituto, está aí. Não sabemos se esses senhores sabem o que é fome, própria, da mulher e dos filhos, ainda que trabalhem. Dormir com som na barriga.
O ex-Presidente Temer manda ao Congresso uma proposta para alterar quatro dispositivos da CLT. Sim, esta merece modificações, em conformidade com as cambiantes transformações do mundo moderno. Porém, seu relator, que precisava aparecer desesperadamente, Sr. Marinho, considerou que alterar cem artigos – incendiar doutrinas universais do direito do trabalho desde o momento de sua “occasio” – é algo que um inexpressivo deputado dos mais longínquos rincões do Brasil poderia fazer. Fê-lo, não se reelegeu e foi afagado por Bolsonaro.
Fala-se, sem decência, que o art. 7º da Constituição Brasileira, que arrola os direitos dos trabalhadores, não foram alterados. Sim, continuam lá, frutas trocadas por capim, mantidas os nomes. Estimulou-se o trabalho terceirizado – que desintegra o empregado da vida e do desenvolvimento das empresas – que as encíclicas papais e a ditadura militar consagravam como valor fundamental à harmonia entre empregados e empregadores. O trabalho temporário – tão só quando se é chamado. O insólito neologismo entre o capital e o trabalho – banco de horas – forma de não se pagar o trabalho prestado em horas extraordinárias.
Dar os anéis para não dar os dedos. Essa a principal compreensão do significado do direito do trabalho. Hoje as castas brasileiras, contando com a emotividade da quase hipossuficiente classe média “empreendedora”, insistem em devastar nossa sociedade. Não há outra expressão que retrate o inevitável levante dos trabalhadores brasileiros – que os militares bem previam e evitavam.
Segue-se um guru de cabeça incandescente e sem sinapses que os militares repudiaram. Sua inanidade mental leva a um abismo. Por isso anda a desancar as tropas. Seus sentimentos recalcados e seus sentimentos reprimidos vêm dos generais de plantão, que, a despeito dos crimes políticos, mantinham um mínimo de bom senso ante um desatinado que, sob a “democracia”, seguido pela família governante, extrema a luta de classes, sem considerar que Karl Marx agradece.
* Amadeu Garrido de Paulaé Advogado, sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados
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