A desconstrução da imagem da “violência” e da “desigualdade social” como parte da sociedade

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Mariana da Cruz Mascarenhas – Infelizmente, ainda vivemos num mundo marcado por guerras, confrontos, discursos de ódio e a manifestação dos mais diversos tipos de preconceito. Assim, embora tenhamos evoluído na descoberta de novas ciências e tecnologias, e as condições de vida hoje se mostrem muito melhores que no passado, o ser humano ainda não aprendeu a desfrutar de tudo isso, sem que seja necessário excluir o próximo ou ainda agredir a Mãe Natureza. A tecnologia, embora conecte diferentes partes do mundo, está contribuindo para os isolamentos sociais, levando muitos a crerem não mais precisar do outro para viver.

Byung-Chul Han, filósofo sul coreano, ressalta que “sem a presença do outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual”. Nas redes sociais, por exemplo, tendemos a curtir e aprovar comentários daqueles que pensam como nós; quantas discussões e intolerâncias não se manifestam entre internautas, simplesmente por pensarem e se expressarem de forma diferente?

A própria internet ajuda a maximizar a importância das opiniões na seletividade de conteúdos oferecidos a cada usuário digital. Um exemplo: quanto mais curtimos determinada página de um produto, partido político e afins, mais seremos bombardeados com conteúdos relacionados a essas páginas, criando a falsa crença de que nossas opiniões são mais valorizadas e relevantes. Não adentramos a realidade do outro, que é diferente de nós, por imposição de fronteiras fomentadas pelo ambiente digital.

“Ser observado hoje é um aspecto central do ser no mundo”, afirma Han, quem completa que o “narcisista é cego na hora de ver o outro” e, sem esse outro, “não se pode produzir o sentimento de autoestima”. Há um grande perigo na valorização individualista proporcionada pelas redes e outros meios que, muitas vezes, desencadeiam nas múltiplas manifestações de violência existentes. Com o objetivo geral de “construir a fraternidade, promovendo a cultura da paz, da reconciliação e da justiça, à luz da Palavra de Deus, como caminho de superação da violência”, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) definiu para a Campanha da Fraternidade (CF) deste ano de 2018 o tema “Fraternidade e superação da violência” e o lema “Vós sois todos irmãos” (Mt 28, 3).

O vocábulo “superação” é associado, no dicionário, a termos de progressão, ultrapassagem, mudança. O que poderia significar uma alteração para um estado melhor do que o anterior. É justamente assim que a CNBB busca analisar medidas que possam levar a um estado que ultrapasse o atual, marcado por tantas violências. Mas, para que algo seja superado, é necessário reconhecer que, em seu estágio atual, se configura um problema, e aí reside uma questão: a do reconhecimento, pois muitos já associam a violência como algo inerente à sociedade.

É a chamada violência cultural, entendida como “condições em razão das quais uma determinada sociedade não reconhece como violência atos ou situações em que determinadas pessoas são agredidas. Criam-se processos que fazem aparecer como legítimas certas ações violentas. Elaboram-se discursos para apresentar razões e justificativas como se uma ação violenta fosse devida” (cf. Texto Base da CF 2018, p. 23).

A excessiva exposição midiática de assassinatos, estupros, guerras e confrontos, diariamente, acaba contribuindo para essa normalização social da violência. Seja na TV, internet ou mídia impressa, o bombardeamento de imagens chega até a chocar num primeiro momento, mas basta alguns segundos a mais de repetição imagética para habituar nossos olhos ao que nos é exibido. A forma como o tema é retratado, expondo e invadindo a privacidade das vítimas num verdadeiro espetáculo midiático contribui para a violência cultural. A Organização Mundial de Saúde (OMS) caracteriza a violência pelo uso intencional da força contra si mesmo, contra outra pessoa ou contra um grupo de pessoas. Essa violência pode resultar em dano físico, sexual, psicológico ou morte.

Portanto, um ato violento pode ir muito além da força física e envolver tudo aquilo que fira a dignidade do ser humano, como, por exemplo, a corrupção política, voltada para lucros e benefícios próprios em detrimento das necessidades populacionais. “Ela leva ao descrédito das instituições públicas, à não participação do povo na política” (cf. Texto Base da CF 2018, p. 27). Essa descrença também é fomentada pela superexposição midiática que habitua o olhar do internauta na zona de conforto, ao invés de servir de estímulo para uma mobilização. “Todos os políticos são corruptos, tudo está perdido, não há mais nada a fazer”, são pensamentos que ganham cada vez mais força para felicidade de governantes e instituições que, no objetivo de combater o sujeito pensante e contestador, o deixa a sua mercê.

Desigualdade social – O Papa Francisco critica, arduamente, a chamada “cultura do descartável” proposta pela globalização, que unifica gostos, culturas e percepções, anulando as individualidades e perfis dos mais diversos grupos sociais existentes. Assim, a desigualdade é ampliada sem que os mais prejudicados por ela possuam a total dimensão da situação a qual estão submetidos.

O Brasil responde por quase 13% de assassinatos do planeta, embora possua menos de 3% da população mundial (cf. Texto Base da CF 2018, p. 15).  O contexto socioeconômico é um dos grandes influenciadores na geração da violência. Aumento inflacionário, desemprego e a falta de investimentos governamentais em áreas imprescindíveis como segurança, saúde e educação apenas agravam as diferenças sociais. É óbvio que a relação crime e desigualdade não é direta, há uma série de fatores geradores de violência, mas não podemos ignorar o peso que a economia exerce.

Segundo dados da Oxfam, organização que se dedica a combater a pobreza no mundo, a fortuna dos 42 maiores bilionários mundiais é igual ao patrimônio dos 3,7 bilhões mais pobres. No Brasil, os cinco maiores bilionários do país possuem uma riqueza somada de 85 bilhões de dólares, equivalente ao montante acumulado pela metade mais pobre da população. A desigualdade de oportunidades favorece tal cenário e, em períodos de recessão, as classes menos favorecidas são sempre as que sentirão no bolso as maiores consequências.

Portanto, pensar em medidas de superação da violência requer, primeiramente, reconhecer sua gravidade, rompendo o conformismo gerado pela sua superexposição midiática. Esse rompimento também deve significar o exercício de olhares diferentes para realidades distintas, em que possamos compreender o outro como alguém que complementa a existência da humanidade e não que deva ser descartado por ser diferente, por meio do conviver. A partir daí a desigualdade social se tornará um incômodo que deverá resultar na mobilização pelo oferecimento de novas oportunidades às classes menos favorecidas, para maior equilíbrio social e compreensão das diferenças como essenciais para manutenção da “teia social” em seus aspectos econômicos, políticos e sociais.

 

* Mariana da Cruz Mascarenhas é jornalista e especialista em Comunicação Organizacional e Metodologia do Ensino na Educação Superior. Mestranda em Interdisciplinaridade em Ciências Humanas. Articulista e crítica de Economia e Cultura, já escreveu matéria do Vaticano, além de muitos outros trabalhos jornalísticos realizados em São Paulo. www.marianamascarenhas.com

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