Da Redação – O empoderamento feminino e a recuperação do agressor como fatores de prevenção à violência e à efetiva e completa aplicação da legislação foram os principais pontos de discussão da audiência pública “10 anos da Lei Maria da Penha e a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica”, promovida pela deputada Márcia Lia, no auditório José Bonifácio, da Assembleia Legislativa de São Paulo, na noite de terça-feira (09).
O evento teve a participação de cerca de 80 pessoas, entre homens e mulheres, e será promovido também na Câmara de Araraquara na quinta-feira, 11, a partir das 19 horas, em mais uma atividade de descentralização das discussões da Alesp organizada pela deputada. Em Araraquara, o evento será realizado em conjunto com os mandatos dos vereadores Donizete Simioni, Gabriela Palombo e Édio Lopes.
Márcia Lia abriu o debate apresentando dados de violência contra a mulher, entre eles que 56% dos homens admitem já ter cometido alguma forma de agressão física e psicológica contra uma companheira e que 38% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente. “Esses dados mostram que a violência acontece no seio da família, nas relações de afetividade e, na maioria das vezes, acomete as mulheres. Precisamos reforçar tudo aquilo que a lei pode fornecer e melhorar as condições para diminuir a violência contra as mulheres”, disse a deputada.
As melhorias na rede de atendimento à mulher vítima de violência – um dos itens de discussão constante da deputada Márcia Lia sempre que a Lei Maria da Penha e colocada em debate -, foram tratadas pelo secretário de Justiça e Cidadania, Márcio Elias Rosa. Ele admitiu falhas no sistema atual e também demonstrou preocupação com o agressor. “Ele é o réu, mas não perde a dignidade da pessoa humana e precisa ser tratado como tal. Hoje, o sistema precisa oferecer a ele uma reinserção na sociedade”, afirmou.
O secretário lembrou que a Constituição Federal contempla a criação de Sistemas Únicos, mas a questão da segurança nacional nunca foi tratada como essa proposta. Ele acredita, no entanto, que o mais importante para este momento é pensar na rede de atendimento unificada, com saúde, assistência social, habitação e segurança pública “para que o Estado seja capaz de recepcionar a vítima, ter credibilidade junto a ela, não fazer dela vítima de novo, e para que ainda possa acolher o agressor”. “Não podemos fracionar a política pública em uma área tão sensível, temos de aprender a trabalhar no sistema integrado e depois criar um sistema único”, afirma.
Atualmente, a cidade de São Paulo tem dois projetos experimentais em que a Guarda Municipal e agentes de saúde contribuem para a aplicação da Lei Maria da Penha, segundo o secretário. No projeto Guardiã, a GCM faz a fiscalização das medidas protetivas e vai às residências das vítimas. Já em Cidade Tiradentes, integrantes do Programa Saúde da Família e lideranças comunitárias foram capacitados para divulgar a Lei Maria da Penha nas casas. “É um exemplo de integração, pois se trata de um programa federal em que a autoridade que capacita é estadual e o resultado se dá em âmbito municipal”.
Com a proposta de integrar o atendimento às vítimas e devolver a elas a autoestima para a retomada de suas atividades, a Comesp tem trabalhado há três anos com os conselhos, Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público e as entidades Geledés Instituto da Mulher Negra e Instituto Artemis. Recentemente, ainda desenvolveu o Projeto Fênix, que dá à vítima de violência prioridade no atendimento médico reparatório, físico e estético, por indicação do juiz, e fez parceria com a ONG Turma do Bem para oferecer atendimento de reparação odontológica para quem teve danos em razão de socos e outros golpes de violência doméstica.
Atender deve ser prioridade – A sensibilização das pessoas que trabalham nas “portas de entrada” do atendimento às vítimas de violência doméstica – delegacias e unidades de saúde -, para que as mulheres sintam-se acolhidas e deem continuidade ao caso na rede, foi assunto da delegada Rosmary Corrêa, do Conselho Estadual da Condição Feminina. “Não da para pedir à vítima voltar depois. É preciso atender, mesmo que demore horas”, afirmou. A delegada ressaltou ainda a importância de capacitar policiais, médicos, enfermeiros para que eles conheçam o que a rede tem na região e encaminhem a vítima para outros atendimentos.
Ela também defende mudanças na descrição das lesões colocadas nos laudos do Instituto Médico Legal (IML). A maioria apontará, segundo a delegada, lesão leve porque lesão grave só se configura quando a mulher estiver impedida de trabalhar por 30 dias. “Ela pode estar toda machucada, mas se puder trabalhar, ao final o legista vai colocar lesão leve. Quando o juiz recebe o laudo ele não está vendo a vítima e vai considerar apenas o que está no laudo. Estamos pedindo aos legistas para fotografar e explicitar no laudo todas as lesões que a vítima tem para dar uma visão melhor do que a mulher sofreu”, considera.
A defensora pública Yasmin Oliveira Mercadante Pestana, do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, lembrou que o papel do Estado vai além da punição do agressor. A Defensoria tem o papel de dar voz à mulher e atendê-la do ponto de vista integral, de forma a respeitar sua autonomia. “É um crime, sim, mas muitas delas não querem a punição, não querem o Boletim de Ocorrência; elas querem o divórcio, a guarda dos filhos, a medida protetiva. E por isso a Defensoria tem defendido que a medida protetiva não necessite do Boletim de Ocorrência, até porque a Lei Maria da Penha não prevê esse vínculo. É preciso desburocratizar.”
Na visão da ativista Sônia Coelho, representante da Sempreviva Organização Feminista, a diminuição dos casos de violência contra mulheres começa com ações preventivas que, obrigatoriamente, passam pelo empoderamento feminino. “A auto-organização das mulheres é o maior aspecto para lutar contra a violência, para que haja mudança na sociedade, para que se interfira na violência. A raiz da violência da mulher é a desigualdade na sociedade, é a opressão que nós vivemos, é o uso da violência como mecanismo de controle do nosso corpo, da nossa vida, da nossa autoridade”, avalia a especialista.
Nos trabalhos desenvolvidos pela Sempreviva, Sonia diz ter verificado o crescimento da violência contra as mulheres mais jovens e as negras, especialmente nos espaços públicos. “A Lei Maria da Penha contribuiu para a sociedade fazer a discussão da desnaturalização da violência, isso é fundamental nessa luta, mas ela sozinha não dá conta de enfrentar essa sociedade patriarcal, racista e machista. A gente quer que a violência não aconteça, mas se acontecer precisa haver meios e equipamentos para a mulher ser apoiada, acolhida”.
Patrimônio do homem – A procuradora Ana Paula Zomer, que representou a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP, Kátia Boulos, reforçou a necessidade da “luta incansável” pelo empoderamento das mulheres para evitar a incidência de casos de violência. “A primeira razão de ser da violência de gênero é o fato de se vislumbrar na mulher um objeto, uma determinada posse que permita ao futuro agressor dispor dela como lhe aprouver, até a hora em que ela não se permitir mais fazer parte do patrimônio do agressor. E quando ela não se permite mais fazer parte do patrimônio do agressor, ela é agredida”, avalia.
Com seu olhar de criminóloga, a procuradora busca entender os porquês da violência e por qual motivo ela acontece no seio da família. A conclusão e que a construção da imagem da mulher que serve e tem a única função de assessorar o outro é feita dentro de casa, quando a menina só brinca com bonecas e panelinhas e quando é ela quem substitui a mãe nas funções de cuidado com a casa, nunca o irmão. “Facilmente ela se transforma em objeto. É isso que está na visão da sociedade, como ela enxerga o que a mulher é capaz de fazer e sua efetiva habilidade em definir os seus destinos”, fala.
Rosto da vítima – A desembargadora Angélica de Maria Mello de Almeida, coordenadora da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário (Comesp), trata dos casos de violência já consumados e constata a preferência do agressor pelo rosto da vítima. Segundo ela, é uma maneira de atingir ainda mais a dignidade da pessoa humana, porque significa desnaturar a mulher. São casos de cortes com navalha, ácido e substâncias inflamáveis, sempre com lesões muito graves provocadas por ex-namorados e ex-companheiros.
Em um dos casos relatados pela desembargadora, o agressor encontrou a ex-namorada com um novo relacionamento e riscou o rosto dela com navalha. Em outra situação, outro rapaz inconformado com o fim do namoro por iniciativa da mulher mordeu o nariz dela e arrancou um pedaço. “São casos de uma gravidade intensa e, dentro deste contexto, a mulher se sente constrangida em dizer à sociedade que sofre violência dentro da sua casa, que sua casa não é um lugar onde ela tem condição de segurança. Outras vezes, tem medo porque, uma vez levada ao delegado, a agressão pode se tornar mais constante e grave”, avalia.
Para a ex-deputada Telma de Souza, a violência nasce da repetição e a agressão sofrida por uma mulher é repassada por ela aos filhos, de forma que essa força continua a atingir as relações, familiares ou não. “Uma sociedade é constituída de maneira democrática ou de maneira violenta. Meu pai foi cassado na ditadura militar, ficamos em casa presos com o Exército na nossa porta, eu, meu pai e minha mãe. Era uma violência que a sociedade daquela época começou a repetir. E, enquanto não tivermos a compreensão do que nos acontece, das relações que uma sociedade constrói para nos libertarmos ou não, não conseguimos ter cidadania plena para sermos protagonistas das nossas vidas, para não termos que decidir entre ser quem apanha e quem foge”, aponta.
Agressores – Sem o controle de sua própria vida e vítima de violência doméstica, a mulher terá lesões difíceis de se apagar, segundo a procuradora, mesmo que haja repressão e penalidades para o réu. Por isso é preciso trabalhar na prevenção. “Só poderemos evitar esse tipo de lesão se evitarmos esse tipo de agressão. Para isso, educação em tenra idade e educação por meio do exemplo”, disse, pontuando que o agressor também precisa ser cuidado para que deixe de ser parte do ciclo de violência. “Se o agressor não é educado, o ciclo de violência não acaba.”
A procuradora antecipou a fala do professor e filósofo Sérgio Barbosa, coordenador da ONG Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, que trabalha na recuperação dos agressores. Há 20 anos, dentro de um movimento social de moradia, ele desenvolveu um projeto em que os homens agressores eram chamados para rodas de conversa. Lá, diziam por que agiam com violência. Era o embrião do premiado projeto “Homens autores de violência”.
Barbosa lembra que a Lei Maria da Penha contempla a criação de centros de reabilitação para os homens agressores, mas que esta ferramenta da lei ainda não foi colocada em prática, e reforça sua necessidade ao dizer que sem a recuperação do agressor, o ciclo de violência nunca acaba. “A mulher pode sair de casa e se libertar, mas o homem agressor vai constituir nova família e agredir outra mulher. No grupo reflexivo, descontruímos o machismo, criamos um estranhamento a esse modelo e ao que é ser homem para ele. Vamos fazer com que ele reconheça a responsabilidade sobre seus atos, compreender sua raiz e construir uma nova identidade, para que ele consiga resolver seus conflitos sem o uso da força”, explicou.
Violência institucional – A violência institucional foi o tema abordado por Isabela Cunha, do Projeto Estrangeiras, realizado pelo Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), com mulheres estrangeiras encarceradas no Brasil.
Ela explica que o sistema prisional brasileiro foi feito por e para homens e não contempla as especificações de gênero. Diante do “boom” de prisões de mulheres nos últimos anos – de 2006 a 2012, as prisões de mulheres aumentaram 246%, contra 130% de homens -, a maioria por tráfico de drogas, o sistema se tornou outra ferramenta de violação dos direitos das mulheres. Os problemas são vários.
Na prisão, a mulher faz atividades de costura, faxina e nunca tem capacitação para conseguir uma colocação melhor no mercado de trabalho quando sair do cárcere. Também não recebe atendimento regular no sistema de saúde para fazer mamografias e Papanicolau. E não pode ficar com os filhos recém-nascidos por mais de seis meses, na melhor das situações. Em muitos casos, as crianças são colocadas para adoção, desconsiderando-se que esta mulher um dia irá sair da prisão. “São Paulo é o Estado que mais prende pessoas e o que mais prende mulheres em todo o País, mas não está preparado para lidar com elas. São mães, de baixa escolaridade, principais provedoras do lar, e talvez essa rede precise pensar também nessas mulheres e nos familiares delas.”
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