A dignidade humana e os efeitos da irracionalidade punitiva

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Marcelo Aith*

Dentre as notícias jornalísticas que permearam os veículos de comunicação do país, passou praticamente despercebida a matéria da Folha de S.Paulo intitulada “Técnica de tortura de quebrar dedo de presos é detectada em cinco estados”. A referida matéria relata escandalosa série de torturas impostas aos presos de Itaitinga, na Região Metropolitana de Fortaleza, local em que 72 pessoas, sob custódia do Estado, haviam sido espancadas por agentes penitenciários.

Segundo a reportagem, o Juiz da Vara das Execuções, os representantes do Ministério Público e da Defensoria fizeram uma inspeção de surpresa e constataram a veracidade das denúncias trazidas por alguns presos.

O Defensor Público, Delano Benevides de Medeiros Filho, um dos integrantes do grupo, verificou as barbáries impostas as pessoas presas e pontuou: “Um seriado da Netflix não mostra o que era aquilo, tá entendendo? Cena de horror. Os caras todos quebrados, todos machucados. Tortura escandalosa”.

O Representante do Ministério Público, Humberto Ibiapina Lima Maia, do NUINC (Núcleo de Investigação Criminal), destacou como se davam as torturas: “Eles usam aqui a posição chamada de ‘procedimento’. O detento senta no chão, com pernas próximas ao corpo, e cruzar os dedos em cima da cabeça. Eles [agentes] batem com a tonfa [cassetete] nos dedos que estão cruzados em cima da cabeça. Isso provoca lesões. Dependendo da força com que se bate, provocam lesões graves, inclusive com a quebra do osso”.

Infelizmente, essa dantesca história está longe de ser uma raridade nos presídios brasileiros.

Na obra “A Pequena Prisão”, o autor relata um dos castigos impostos a quem ousava descumprir o costume imposto pelas autoridades administrativas e agentes penitenciários de exigir que as pessoas presas permaneçam com a cabeça abaixada e com as mãos para trás, conforme se extrai do trecho abaixo:

– Mão pra trás e cabeça baixa, porra!

Vi, pela primeira vez, o que acontecia com quem descumpria a ordem: um violento tapa na cara, que ressoou pelo salão.

 – Tá olhando o quê, caralho?!

Mas as torturas não se restringem as agressões físicas impostas diretamente aos encarcerados, conforme se pode depreender do relatório do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo escancara as mazelas do sistema penitenciário paulista.

A Defensoria inspecionou 27 unidades prisionais no Estado de São Paulo, constatou problemas gravíssimos, tais como: a) superlotação; b) precariedade das estruturas físicas das construções, inclusive de falta de ventilação, infiltração, rachaduras; c) presença de insetos e outras pragas; d) falta de assistência médica; d) racionamento de água e de banho quente; e) limitação de banho de sol; f) falta ou limitação de fornecimento de material de higiene pessoal; g) falta de alimentação e; h) violação da integridade física e psicológica e as sanções coletivas.

Destaca o relatório do NESC que 81,48% das unidades inspecionadas estavam superlotadas. Dentre as unidades inspecionadas, há que se destacar a situação do Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente. Tal unidade, conforme relatos dos defensores públicos, “as pessoas presas são obrigadas a dividir celas com até 43 pessoas, ocupando espaços que, em teoria, têm estrutura física para no máximo 12 pessoas”.

O relatório traz a absurda situação, no mesmo CDP, de duas celas de “castigo” que estavam “hiperlotadas”. Celas que comportam uma pessoa contavam com oito presos, ou seja, 800% (oitocentos por cento) de ocupação. Destacam, ademais, que os vasos “sanitário” estavam entupidos. Mesmo que fosse uma situação episódica, o fato relatado demonstra, cabalmente, o descaso do poder público, em especial da administração carcerária, com a vida humana.

Além da superlotação e todas as consequências decorrentes dessa nefasta situação, as pessoas presas são expostas a riscos de vida diante da estrutura física precária das unidades de prisionais. O relatório do NESC é rico em detalhes que evidenciam o descaso do poder público com as pessoas custodias nos presídios paulistas.

Os defensores públicos destacam que a totalidade das unidades inspecionadas mostram um quadro drástico de insalubridade, de má iluminação e pouquíssima ventilação. Destaque-se, por oportuno, excerto do relatório: “Boa parte das celas têm portas chapeadas, não gradeadas, o que impede a entrada de luz natural e a ventilação cruzada”. Segundo o relatório do NESC a cela da inclusão no CDP de Americana é um “verdadeiro calabouço”, sendo certo que as pessoas presas ficam quase sem ventilação e iluminação, infestadas de piolhos e outros insetos.

Todos esses estados de coisas trazidos no relatório, tais como as gravíssimas violências impostas aos presos no presídio cearense, são afrontosas à dignidade das pessoas presas. Não se pode perder de vista, jamais, que são pessoas que estão privadas de suas liberdades, quer para o cumprimento de suas penas, quer pela imposição de prisões cautelares. Como seres humanos que são, devem ter preservadas intactas suas dignidades.

Na execução penal, o princípio da humanidade ou dignidade da pessoa humana, conforme destaca Rodrigo Roig, “é pano de fundo de todos os demais princípios penais e se afirma como obstáculo maior do recorrente anseio de redução dos presos à categoria de não pessoas”.

Ademais, não se pode olvidar que o princípio da humanidade funciona como contenção à irracionalidade punitiva, que em última instância vai desaguar no sistema penitenciário. A Constituição da República traz alguns exemplos de normas vedatórias da irracionalidade do poder punitivo: a) proibição de tortura e tratamento cruel e degradante (art. 5º, III); b) individualização da pena (art. 5º, XLVI) e; c) proibição das penas de morte, cruéis ou perpétuas (art. 5º, XLVII).

No entanto, em que pese a situação aberrante e draconiana trazida na matéria da Folha de S.Paulo e no Relatório do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública de São Paulo, pouco ou nada se fará para mudar esse estado de coisas, na medida em que são questões contra majoritárias, que não são palatáveis para a população em geral e não trazem votos para os políticos defensores.

Infelizmente, a ausência de interesse em mudar esse estado de coisas decorre, fundamentalmente, da ideia, muito difundida entre aqueles que não conhecem a realidade do cárcere ou que tenham uma vocação punitivista, de que o condenado, por ter cometido um ilícito penal, deve experimentar um grau de sofrimento mais elevado do que as pessoas livres. Essa concepção decorre do princípio da less eligibility, surgido na Inglaterra, em 1834, pelo Poor Law Amendment Act, que consiste na ideia de que a situação no cárcere não poderia ser mais atrativa do que a situação dos que estão em liberdade. Portanto, tristemente continuaremos a normalizar violências contras pessoas presas, mesmo porque são consideradas, por muitos, como uma subclasse de seres humanos.

  • Marcelo Aith é advogado, Latin Legum Magister (LLM) em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa (IDP), especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidade de Salamanca, mestrando em Direito Penal pela PUC-SP e presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Econômico da Abracrim-SP.
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