João Badari – O Supremo Tribunal Federal está finalizando o julgamento da importante “Revisão da Vida Toda”, onde o placar está em 6 a 5 para os aposentados. Uma importante vitória social e constitucional, que reacendeu a chama dos aposentados que tanto batalharam por seu país e foram injustiçados no cálculo dos seus benefícios.
Sempre que ocorrem severas mudanças previdenciárias, onde a maneira de adquirir o benefício previdenciário e sua forma de cálculo são afetados, o legislador busca uma “homeopatia jurídica” para minimizar distorções: as regras de transição.
As regras de transição são um meio termo entre a regra antiga, mais vantajosa, e a regra posterior, mais rígida e severa. Elas amparam quem já estava próximo da sua aposentadoria. Vou explicar de forma prática: o senhor José tinha 30 anos de contribuição em 1998, como não possuía os 35 anos não possuía o direito adquirido a aposentar-se.
Como o legislador entende que seria injusto ao senhor José, com três décadas de pagamento ao INSS, mudar severamente as regras de sua aposentadoria, ele cria opções um pouco mais brandas, que pelo menos vão lhe garantir uma diferenciação entre ele, que estava próximo do benefício, e quem nunca contribuiu.
Agora, imaginem a regra do senhor José ser ainda mais desvantajosa que a permanente utilizada por quem não havia se filiado ainda ao sistema. E isso ocorreu para milhares de aposentados brasileiros. Sim, muitos aposentados com décadas de pagamento ao INSS foram surpreendidos com a aplicação de uma regra mais prejudicial do que o segurado que não havia pago ao sistema.
E essa injustiça cometida pelo INSS por mais de 20 anos está sendo corrigida pelos ministros do Supremo Tribunal Federal O STF não está criando uma regra diferenciada para o senhor José, ele apenas está permitindo que ele use a regra criada para aquele que nem filiado ao sistema estava.
Vale ressaltar: neste caso o STF não trouxe qualquer hibridismo legislativo, onde usa o melhor de cada legislação para o segurado, ambas estão na mesma legislação. Trata-se da aplicação já consolidada pela corte da utilização do melhor benefício que o segurado tem direito. Esta regra é até mesmo uma instrução obrigatória aos servidores da Autarquia na análise de processos administrativos.
O STF está garantindo o princípio constitucional da segurança jurídica (5º, XXXVI.), pilar do Estado Democrático de Direito, que traz estabilidade nas relações jurídicas e proteção à confiança. O princípio da segurança abrange a ideia da confiança e previsibilidade, por meio da qual o cidadão tem o direito de poder confiar em que aos seus atos e decisões incidentes sobre seus direitos se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos por essas normas. Trazendo também a ideia da proteção no caso de uma mudança legislativa, em que a regra de transição abranda efeitos trazidos pela nova lei, jamais agrava.
E mais, até mesmo assegurando a segurança jurídica de suas próprias decisões, onde o mesmo entende que para o Regime Próprio de Previdência Social jamais uma regra de transição poderá ser mais desfavorável que a permanente.
Merece destaque o trecho do RE 524.189, com relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki, julgado por unanimidade: “As regras de transição editadas pelo constituinte derivado, são na verdade mais gravosas que a regra geral inserida na EC 20 de 1998.” E continua: “a própria regra de transição da aposentadoria proporcional, por absurdo, continha requisitos não previstos no texto legal do que a aposentadoria integral”. O STF entende por absurdo tal ocorrência.
A decisão dos 6 ministros favoráveis a tese é uma cristalina proteção ao Estado Democrático de Direito, ao respeito das garantias sociais, a manutenção da segurança jurídica garantida pela Constituição federal e também ao próprio entendimento do tribunal.
Vale destacar: a Revisão da Vida Toda foi vencida pelos aposentados de forma unânime no Superior Tribunal de Justiça. E no STF teve até mesmo, em brilhante fundamentação, a posição favorável do Procurador Geral da República.
O INSS apela com argumentos financeiros, alegando que a ação custaria R$ 46 bilhões aos cofres públicos. Aqui vale um destaque, pois ele alega um “prejuízo” ao governo. O pagamento de atrasados devidos, onde aposentados foram lesados mensalmente e poderiam estar se alimentando melhor, comprando os seus remédios e pagando o aluguel não é presente, é obrigação. O termo prejuízo se trata de perda, e aqui quem perdeu foi o aposentado. Essa alegação é uma afronta, pois parece um “bônus” a ser pago, e não é: é uma correção ao erro da autarquia que mensalmente, por décadas, ficou com estes valores dos aposentados.
O prejuízo foi do contribuinte, e não do Estado. O INSS está buscando jogar a população contra os aposentados que foram lesados, com a apresentação de um estudo de impacto financeiro que não teve amparo científico aprofundado, e mais, não reflete a realidade. Vou explicar:
O INSS na nota técnica SEI nº 4921/2020 em seu item 3 explica que este estudo “possui elevado grau de complexidade em decorrência da infinidade de combinações possíveis ditadas pela forma como cada trabalhador se comportou ao longo do tempo. Em razão disso, optou-se pela realização do cálculo a partir de uma amostra aleatória produzidas pela Dataprev”, e no item 12 conclui “é razoável supor que a maioria dos aposentados, especialmente aqueles por tempo de contribuição, venham requerer a revisão”.
Não podemos supor que a maioria dos aposentados irá cobrar este direito, pois será necessário o aposentado se socorrer do Judiciário para isso. E sabemos que no Brasil a maioria da população não possui conhecimento dos seus direitos e não os exige de forma administrativa, mais raro os que buscam o Poder Judiciário. Estamos aqui tratando exceções como regras.
E nestes dois itens trazidos encontramos um grave problema em aceitar este estudo: ele atesta que é uma suposição com dados aleatórios. Isso está expresso em seu texto. Custaria muito caro a nossa nação passar por cima de direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal por uma suposição apresentada pela ré no processo.
Outro ponto a ser discutido: O INSS estima em quase R$ 2 bilhões o seu custo de operacionalizar a revisão e realizar os cálculos. Isso é subestimar o julgador e a sociedade, pois o sistema é informatizado e os dados estão no CNIS. O sistema Dataprev faz o cálculo em segundos, não existe trabalho braçal, como ocorria na década de 90. Em 2022 o próprio segurado, com um sistema de cálculos gratuito, consegue até mesmo realizar cálculos (em segundos) com um smartphone.
E mais, mesmo que ainda fossem feitos “a mão” pelo servidor, o que não é o caso, a Administração Pública deve se pautar pelo princípio da eficiência – art. 37, caput, do Texto Constitucional, e eventuais custos administrativos não podem significar óbice ao exercício de direitos fundamentais. Assim, eventuais custos para implementação do recálculo derivado da revisão da vida toda devem ser necessariamente suportados pela autarquia federal e desconsiderados do montante global aduzido na Nota Técnica aqui debatida.
Agora vamos entrar em questões práticas, a ação da “Revisão da Vida Toda” é uma exceção, o que muito bem explicitou o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto. O normal na vida laboral é você iniciar recebendo menos e ao longo dos anos receber salários maiores, esta é a regra. A Revisão da Vida Toda busca socorrer quem é a exceção, quem ganhava e recolhia por mais e passou a receber menos. E o INSS simplesmente descartou seus valores pagos.
Por isso, o número de segurados que cabe a revisão é minoria, e para muitos o aumento será de poucos reais, o que não vai compensar a judicialização do pedido de revisão. Neste ponto, é muito provável que não sejam ajuizadas ações revisionais por parte de aposentados em relação aos quais o benefício poderá ser reajustado minimamente, ou mesmo apresente resultado negativo.
Na prática, não haverá interesse econômico no processo, ou este não será viável do ponto de vista econômico, e aqui trazemos à baila a barreira econômica ao acesso à justiça, conforme a clássica abordagem de Mauro Cappelletti e Bryant Garth.
Agora, passo a tratar do tema mais importante a ser considerado neste estudo do INSS, onde eu vou tratar da decadência, pois a Revisão da Vida Toda pode ser utilizada apenas por quem possui menos de 10 anos de aposentadoria. A Nota apresentada aponta como maiores responsáveis pelo gasto de R$ 46 bilhões os anos de 2009, 2010 e 2011, porém, estes anos já decaíram. O aposentado não poderá mais cobrar este direito de revisão, pois o prazo decenal já está ultrapassado.
A cada mês mais aposentados terão seu direito fulminado pela decadência, e isso torna muito menor o impacto financeiro da ação. Em seu item 6 ela afirma “um resultado importante demonstrado pelos cálculos foi de que quanto mais antiga foi a concessão da aposentadoria, maior o percentual de incremento na média global”. De forma simples e prática: os anos que mais trariam gastos ao governo já não poderão mais ser revistos e os benefícios que ainda poderão ser revisados irão trazer pequeno aumento na renda do aposentado.
E para finalizar, como bem fundamentou o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto de minerva: a Revisão da Vida Toda não impacta os benefícios concedidos pelas regras da Reforma da Previdência, Emenda Constitucional 103. Onde as aposentadorias concedidas pelas regras novas, após 12 de novembro de 2019 não fazem jus a revisão.
Parabenizo o Supremo Tribunal Federal por essa decisão, que privilegiou princípios fundamentais e garantias sociais, frente a alegações econômicas que não refletem a realidade trazidas pelo INSS. Finalizo com brilhante a citação de artigo para o jornal Folha de S.Paulo, com o título “Proibição do retrocesso”, do Exmo. Ministro Ricardo Lewandowski: “O princípio da proibição do retrocesso, portanto, impede que, a pretexto de superar dificuldades econômicas, o Estado possa, sem uma contrapartida adequada, revogar ou anular o núcleo essencial dos direitos conquistados pelo povo. É que ele corresponde ao mínimo existencial, ou seja, ao conjunto de bens materiais e imateriais sem o qual não é possível viver com dignidade.”
- João Badari é especialista em Direito Previdenciário e sócio do Aith, Badari e Luchin Advogados
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