Estupro de vulnerável e os realities shows

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* Antonio Gonçalves – O final de semana foi conturbado, após cenas envolvendo o cantor Nego do Borel e Dayane Mello, acerca da possibilidade de estupro de vulnerável. De início, as redes sociais – atual tribunal digital – se pronunciaram com estranheza, afinal, dois adultos não podem praticar atos libidinosos? Os flertes iniciados na festa não poderiam prosseguir? Se eles estavam a fim, que mal haveria nisso?

Estupro de vulnerável, imagine, pois ambos são maiores e tem plena consciência de seus atos! Não há proibição alguma ou qualquer censura acerca do livre arbítrio de uma pessoa sobre seu corpo ou suas preferências, no entanto, o Código Penal brasileiro protege a vítima em caso de vulnerabilidade. Desenvolvemos.

A fim de implementar maior proteção, especialmente às mulheres, em 7 de agosto de 2009 o Código Penal sofreu ampla reforma pela promulgação da Lei n° 12.015/09, no que tange os crimes sexuais, e sobre o tema destacamos duas mudanças: primeira a alteração do conceito de estupro que passou a ser compreendido como constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Um avanço na legislação, pois até então, se diferenciava inclusive na dosimetria da pena, estupro de ato libidinoso. Agora, ambos perfazem o conceito de estupro.

A segunda modificação está contida no §1° do artigo 217-A do Código Penal:

Art. 217-A ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos:

Pena: reclusão de oito a quinze anos.

§1° – Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

No caso do reality show houve uma festa com bebida à vontade e a participante bebeu além da conta e, ao estar totalmente embriagada, ficou sem condições mínimas de discernimento a ponto de ter de ser carregada, pois não conseguia andar sozinha e, ainda assim, bateu a cabeça no batente da porta.

Já na cama foi assediada pelo cantor e tal iniciativa produziu preocupação em outros participantes que intervieram, após ouvirem negativas da moça acerca dos avanços de Nego do Borel, tais como: “Para com essa boca, para com essa boca”. Dentre eles temos Rico Melquiades que pediu para Nego se afastar de Dayane por estar muito excitado e ela completamente embriagada. Na sequência, outro participante, MC Gui questiona Dayane: “Day, você está bem? Tem certeza que você quer ficar aí? Quer ir para a sua cama ou ficar aí? As perguntas ficaram sem resposta.

No dia seguinte, a participante foi vista sem roupa e ao sair da cama vestiu seu short, como atestou Dynho Alves. Por fim, a mesma disse às colegas de confinamento que estava com marcas: “Eu não sei o que aconteceu, tô com uma dor imensa, tem uns roxos aqui”. E prossegue: “De novo eu aprontei nessa festa”.

A inserção do artigo 217-A no Código Penal teve como condão proteger as vítimas de eventuais abusos sexuais em decorrência do excesso de bebida alcoólica. Aqui há a necessidade de separação de cenários: em um primeiro momento o contato e flerte estabelecido entre duas pessoas faz parte das relações sociais e cabe essencialmente a eles decidirem se haverá contato físico que pode ou não evoluir para atos libidinosos e até conjunção carnal. Porém, aqui está o elemento essencial para a não autorização do segundo cenário: se qualquer um dos envolvidos passar do limite alcoólico, a ponto de não ter plena consciência na decisão de seus atos, o enlace não poderá prosseguir.

O dispositivo tem por objetivo evitar possíveis justificativas como as de Dayane: “aprontei de novo”. Ora, se não há condições ébrias mínimas não há autorização para a realização de qualquer ato e, mesmo a parte que estiver em condições mínimas de discernimento deverá refrear seus anseios sob pena da prática de estupro. A lógica é evitar qualquer justificativa indevida, como era frequente nos casos de violência contra a mulher de que ela o havia deixado nervoso, que ele andava estressado e ela não fora compreensiva etc.

O fato é: não há qualquer justificativa para consumar uma conjunção carnal ou para a prática de atos libidinosos sem o duplo consentimento das partes. No caso em tela o cantor pode e deve ser investigado por possível estupro de vulnerável e a produção do programa deve autorizar o exame de corpo de delito, inclusive para verificar se havia presença de sêmen.

As festas dos realities têm por objetivo descontrair os participantes da tensão do confinamento e, também, incentivar a troca e o contato entre eles a fim de tornar o ambiente ainda mais favorável. Mas, uma coisa é relaxar outra bem diferente é não verificar excessos e desvios de comportamentos.

É função da direção dessas modalidades de programas garantir a integridade de seus participantes e, mais do que isso, evitar que desvios de comportamentos os venha a serem expostos ou colocados em risco, como o caso em tela. Não basta expulsar aquele que desviou sua conduta o correto é conversar com os participantes para que eles não passem do seu limite alcoólico nas festas, que não façam coisas inadequadas e, mais do que isso, que contem com o apoio, tanto da direção como dos demais confinados, para eventual proteção em cacos de excessos. Cada um está no programa com o objetivo de ganhar, porém, nada em momento algum, justificará um crime ou uma prática danosa em decorrência de abuso de bebida, o Código penal está aí e a vontade deve preponderar: não é não! E Não acima do teor alcoólico é não mesmo!

Não cabe mais na realidade penal atual o adágio popular: “quem nunca passou do limite e fez algo do qual se arrependeu?” No que depender do Código Penal brasileiro e da proteção à vítima: ninguém.

* Antonio Gonçalves é advogado criminalista. Pós-doutor em Desafios em la post modernidad para los Derechos Humanos y los Derechos Fundamentales pela Universidade de Santiago de Compostela, Pós-Doutor em Ciência da Religião pela PUC/SP, Pós-Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas

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