* Victor Missiato – Apresentar-se diante de um espelho é um dos exercícios mais desafiadores do ser humano com seu alter-ego. É neste ato que as imperfeições mais aparentes e transparentes se entrelaçam como uma descoberta desafiadora para as nossas maiores questões. Muitas são as cenas do mundo da arte que ilustram o personagem apresentando as sensações mais dramáticas da vida diante de um espelho, ora enxergando uma realidade límpida, ora procurando criar forças para mascarar determinada situação.
No tempo da História, o espelho da humanidade modifica-se, pois não se trata de um tempo presente, mas de um tempo passado constantemente reinterpretado pelo presente. Diante disso, o espelho da História é o espelho retrovisor. Mediante sua curvatura, o espelho retrovisor oferece ao condutor a possibilidade de ampliar o campo visual transpassado. Desse modo, comparado ao espelho plano, o espelho do retrovisor, ao se moldar de forma convexa, produz uma leitura do objeto em tamanho reduzido em relação à sua forma original, mas com um aumento da paisagem observada na quadratura da imagem na qual este objeto encontra-se presente.
Este exercício físico da relação condutor, imagem, ângulo, luz e tamanho pode ser interpretado na leitura histórica a partir da contextualização e da posição do espectador envolvido. Alexis de Tocqueville, ao analisar a Revolução Francesa, dizia ser impossível compreendê-la sem olhar para fora da França. Compreender a criação dos campos de concentração na Alemanha e na URSS, sem relacioná-los com o sistema de produção da Segunda Revolução Industrial, retira do objeto sua paisagem. Milhares são os possíveis exemplos que podemos dar no que diz respeito à visão da História no passado. O grande problema é que, por se tratar de uma paisagem em constante movimento, seu controle nunca será exato.
Ao tratarmos o Estado-nação como objeto central do nosso espelho retrovisor, conferimos a este ente um poder legitimador que refundou o poder político da humanidade. Espécie política da modernidade, o Estado-nação suplantou qualquer possibilidade utópica ligada ao cosmopolitismo, até o presente momento. Sua força é tamanha que um manauara e um gaúcho olham entre si e se auto identifiquem enquanto brasileiros. Algo de similar proporção só havia ocorrido com o cristianismo.
Diante de tamanha legitimidade e poder, o Estado-nação passou a ser o objeto principal da política enquanto espaço transformador da paisagem retrovisora. Responsabilizar o Estado por crimes cometidos por seus agentes passa a significar, então, a retroalimentação da paisagem pelo obejto. É como se o Estado devesse reparar todos os crimes cometidos por seus agentes, embora saibamos que o Estado representa um poder de dominação, que nunca existe sem legitimidade e participação do poder social. Portanto, um funcionário nazista não seria bem-sucedido na sua função de deportar judeus sem a colaboração de informantes voluntários. As ditaduras latino-americanas não teriam criado um aparato de tortura e repressão sem a anuência de um poder popular consciente e ciente de que em nome do progresso, “sacrifícios” são necessários.
Por ainda ser tratado como espaço principal de luta, reivindicação e poder, o Estado-nação é o espaço onde os crimes cometidos no passado são selecionados a partir de quem o conquista no tempo presente. Diante disso, olhar para o retrovisor sem a incômoda proximidade com as imperfeições presentes no espelho retilíneo e frontal continuará sendo a válvula de escape do inevitável e incômodo encontro entre consciência e experiência. Julgar e sentenciar os mortos sempre será um exercício mais encantador que corrigir nossas presentes imperfeições.
* Victor Missiato é doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Psicossociais sobre o Desenvolvimento Humano (Mackenzie/Brasília) e Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).
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